sábado, 17 de maio de 2008

Lampejos

Eis a onda do momento. Agora, não me resta tempo para nada no mundo. A completa imersão e transbordamento das coisas. Tirando as horas de sono, que não são apenas sono, mas desmaio ante o mundo, tenho um vácuo de 48h semanais dispensadas para um McDonald's destinado apenas à classe A ou para os B que são incapazes de pagar sequer o serviço. Entrei na vida de merda da cidade grande, engolido pela fuligem, fumaça, escapamento de motor, cigarros tragados pelo digital na Lauro Sodré que calculam cada segundo dispensado dos quinze minutos restantes para retornar ao serviço, ébrio de sono, fraco, débil e cansado. Lá se foi o matiz de vivacidade, de alegria e compenetração poética. Vampirizado pelo mundo. O pedaço de carne que vive nalguns metros quadrados, circulando a esmo sem parar, aguardando a hora de partir.

Vive-se imerso na completa perdição mental e afetiva. Foi-se toda a reflexão. O negócio agora é apostar, e alto, no desespero dos dias. Eis o desafio indecifrável. Quando do tempo inteiro, completo e tedioso, o desgosto. Agora, a precisa percepção de que a guilhotina está ali, afiada, sedenta, inteira, atrás de cada canto teu, capaz de decepar ao meio um fio em todo seu comprimento. É a luz fluorescente, é a hipnose sem fim. Estar jogado na própria sorte, ver-se completo na necessidade de inteirar tudo o que lhe falta sem ninguém por perto. E ver-se ontologicamente na sina de algo sem volta. Destruição perene. Das carnes, dos sonhos, dos passos, das solas de sapato. Acabado, frangalhos de noites sem fim. De noites angustiantes das 18h até as 2h. You lose.

O confronto deliberadamente proposto, de cruzar os próprios sonhos vividos comodamente vezenquando com a dura e crua noção cotidiana de acordar, comer, viver, pegar sempre a mesma linha, ver sempre os mesmos prédios, chegar sempre no mesmo lugar e seguir sempre, irredutível, impassível, fazendo crer os próprios enganos, os próprios erros. Não são quaisquer besteiras. São os erros tomados para uma vida inteira. Quando decidimos que vamos correr o risco de errar, vemos que não tem o menor problema, apesar da certeza de que sempre poderemos escapolir, fugir disso tudo e esquecer que houve erro. Pois é. E nessa roda viva, o que importa é esse lirismo calhorda e cínico. Fortalece, seguramente. Porque não é apenas lirismo calhorda e cínico. É paixão, é desprendimento, desterritorialização e etcaetera e tal. Emerge uma leveza que é incrivelmente poliforme.

As coisas se reconformam, tomam novo sabor, como vinho em barrica velha. Porra de sabor abaunilhado, de epicentro babacóide e perfeccionista com o próprio tempo...Impossível ficar sereno com isso tudo sem terapeuta, sem recursos desmoralizadores. O lance mesmo é jogar tudo pro alto, pra fora. Quem se arriscar a pegar, pega. E nisso tudo, uma pureza, uma vivacidade que não tem nada no mundo que é capaz de suprir. Convivo com o completo desejo realizado, sim, e a completa paumolescência da dura realidade das coisas. Fascinante. Encantador. Viajo pelo tempo, colapsado, pulsante, errante, apaixonado. Lindo, lindo, lindo. Em tudo que está errado, sobretudo nas escolhas medonhas e pouco recomendáveis, vejo que o desgaste e a terra seca ainda são-me mais importantes que a porra toda que podia ter rolado.

Seria tão incrível, e por isso penso agora nisso, ter pensado ou imaginado nos porquês de ter feito tudo isso. Turbilhão. Caralho, vivam os turbilhões. Os desarranjos, as conversas tortas, as passagens mal pagas, os descaminhos. Tchau vias de quatro faixas, planos cartesianos. Seríamos incapazes de permanecer unidos. Não podia com nada. Não posso. Alergia. Quem sabe não faço tudo novamente, para outro lado? Agora, que é real, que é possível...Jogar-me por aí, ignorar medos, temores, inseguranças. Ou usá-las exatamente para isso. É incrível a vetorialidade do mundo. Múltipla, incerta, imprecisa. A cabeça flutua, voa para longe, perdida. Arrependo-me, em parte, como em qualquer metade, de ter largado as coisas mais seguras do mundo. Era tudo muito seguro.

É possível dimensionar o problema disso tudo. Era tão seguro, mas tão seguro! Tanto que ainda sigo com essa mesma segurança. Senão não sairia. E ao invés de travellings without movings, heads with wings, and etc, fui me jogar no esgoto, no abismo, no pântano de um subemprego, de uma sub ciudad, megalópole confusa e descompassada. Refez meu passado, minhas lembranças. Os fios de Ariadne tornam-me inversos. Parece que agora busco voltar ao centro do labirinto. Pelo conforto da memória, pela lembrança cálida e candente. Lá se foram os borrões, os espasmos a doença louca que me consumia. Não me lembro de nada, inquieto e inseguro. Paisagem brutal que segue em mim, agora me trazendo segurança, exatamente por ter gastado, consumido tudo. Sabor doce de ilusão. Ai, paisagens doces.

4 comentários:

Luciana disse...

"não tem o menor problema, apesar da certeza de que sempre poderemos escapolir, fugir disso tudo e esquecer que houve erro"

isso é sério?

Raphael Veleda disse...

Veado feladaputa corintiano do caralho!!! Faz um blog e não fala nada; agora tenho uma caralhada de texto pra ler

Lobão disse...

Pop, Iggy (1977). "Everybody always, wants to kiss your trash". In.: Lust for life.

Bolshaia disse...

Não se arrependa de ter largado o seguro da vida. Pois nada é seguro eternamente.
Viva, não espere conforto para a alma, pois ela só vem com a morte.......
Saudades lindo!
Não se desespere com a ingratidão da vida pelos nosso esforços contínuos de sobrevivência!