quarta-feira, 9 de abril de 2008

A estrada (as primeiras horas de caminhão)


Subi no caminhão de Valter, que me ensinou uma gambiarra pra poder usar o cinto de segurança. Ele estava sem o prendedor do cinto e, portanto, eu tinha de me sentar sobre a ponta que passa pela cintura e passar a ponta que cruza o tórax por trás de mim e colocá-la na posição correta. Esse foi nosso assunto inicial. Poucas palavras. Ele tinha acabado de comprar uma mídia de mp3 com os 25 volumes da discografia completa do Milionário e José Rico e estava ansioso para tocar. Colocou altíssimo e me empolguei com a energia do camarada. Saímos do posto e ele disse que precisava passar num lugar antes de partir, mas que era coisa rápida.

Atravessamos a rodovia, entramos numa estrada de terra bem estreita e ladeada de barracos. O caminhão era gigantesco para a trilha que fazíamos e chacoalhava intensamente na estrada íngreme. Valter não hesitava e dirigia com muito ‘arrojo’, pra não dizer inconseqüência. Muitas crianças brincavam ao redor e bastava colocar a cabeça para fora da janela que era possível ver a enorme nuvem de poeira que ele largava para trás. Depois de costurar muitos caminhos estreitos e inesperados, parou vizinho a um barraco em construção e buzinou. Um senhor veio e conversou brevemente com ele sobre algum retorno com cargas, papo que não me incluía e que evitei escutar.

Valter estava elétrico. Era seu ex-sogro, que viera pra cá morar com a filha. Passou-me imediatamente a contar-me seu histórico amoroso, enquanto dirigia loucamente pelas estradas de terra. Quando alcançou a rodovia, um lugar onde ele podia arroxar o buriti sem medos, retomou uma direção sóbria e contínua, não passando nunca dos 80 km/h. A partir daí, as três ou quatro horas seguintes foram muito Milionário e José Rico e a desastrosa vida amorosa de Valter. Ambas as coisas agora se conectavam profundamente. Aquele som meio caipira, de corno apaixonado, abandonado, a fodelança completa de quem fica para trás enquanto as pessoas vão arriscar outros quinhões.

A estrada seguia infinita. Fitava constantemente a quantidade de plantações, os sistemas de irrigação, as colheitadeiras estacionadas, os caminhões lentíssimos, as filas indianas. Não me era necessário olhar Valter para a conversa fluir, as coisas que ele me falava, falaria mesmo sozinho. Precisava urgentemente desabafar. A ex-esposa decidiu tentar vida nova em Brasília, cagando na cabeça e nos sentimentos de Valter. Ela lhe comunicou, ele tentou conversar, mas ela estava decidida e, portanto, deixou-a partir. Essa foi a versão informada por ele, completamente diversa do desespero indisfarçável que ele vivia do abandono da última companheira.

Valter é nitidamente um camarada passional e espalhafatoso. O colega de serviço que lhe contou minha saga me mostrou para ele. Mesmo assim, fez questão de gritar no pátio das transportadoras que estava partindo para São Paulo e que se alguém precisasse de carona precisava se apresentar imediatamente. No almoço, eram apenas gracejos para as garçonetes. Chamava-as de meu amor, perguntava para uma delas, que tem um filho pequeno, como estava o ‘Valtinho’, dizia que ia tirá-las de lá e dar-lhes uma vida melhor. Tudo isso falado aos berros, pouco se importando com o fato de uma das meninas estar casada com um dos caminhoneiros que estava no pátio.

Comia avidamente, não parava de falar e de sinalizar para os conhecidos. Quando terminou de almoçar, conversou longamente com o dono da lanchonete sobre a comida, o tempero desta e a carne de panela estar horrenda. Ria alto e em tudo parecia investir um sentimento exageradamente agitado em tudo. Saiu pelo pátio conversando com todos, fazendo piadas e rindo pelas orelhas. Magro, um pouco mais queimado de sol que eu, cheio de pequenas verrugas nas maçãs do rosto, essas verruguinhas que pendem como se fosse um excesso de pele, tipo as que o Pixinguinha tinha na cara. Tenho umas dessas na cara, também, que minha mãe me dizia que, na terra dela, era sinal de ‘sangue de preto’. Os incríveis laboratórios de DNA do interior das Minas Gerais.

A conversa tinha um vetor muito bem definido. Valter falava de seus fracassos amorosos e eu escutava completamente calado. No início, tentei abrir a boca, mas ele estava cagando para o que eu pensava. Logo passei apenas a escutar e ele ficou muitíssimo satisfeito, falando pelos cotovelos. Suas histórias, repetidas à exaustão, e a estrada, também repetida demais em sua paisagem depois de algum tempo, não tinham lá muita emoção e logo estava com um sono incontrolável. O caminhão rodava lento e austero, mesmo completamente vazio e com a urgência de Valter chegar à São Paulo. Uma hora, virei a cara pro lado da estrada e dormi pesadamente, sem sonho, sem nada.