quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

(não tão) Breve passeio dominical

Os domingos costumeiramente raiavam por entre a minúscula janela do quarto do cortiço de forma inclemente. Talvez mais pelo telhado de zinco, a tosca armação em tnt para esconder as telhas e a necessidade de manter a janela fechada pelo inconveniente das baratas, domingos se iniciavam sempre de uma forma arrebatadora. O rádio do Salviano, bahiano-paulista morador do quarto fronteiriço, ligado toda a madrugada, seu rádio-relógio de Macabéa, sua paranóia bloqueando-o dentro do tugúrio, desperto, tentando escutar dos vizinhos qualquer referência ou citação à sua pessoa, era uma tormenta. Música xexelenta, dita popular brasileira, de rima pobre e neologismos baratíssimos. O rádio era seu amigo e algumas vezes até seu professor, ensinando-lhe de vida e pondo-o a par do mundo extra-muros do cortiço.

Despertava sempre com o colchão empapado de suor, precipitado pegajoso que emanava inevitavelmente o álcool do dia anterior, o zinco das telhas, a preguiça imensa de ver-se ante o último dia de repouso para iniciar nova jornada semanal. Era mais um domingo qualquer de muito sol, de Maracanã no final da tarde, de praias lotadas e do cortiço curando-se da ressaca religiosamente disparada pelos sábados de desesperadas bebedeiras. O sol brilhava irritante, os rádios do vizinhos começavam a tocar músicas medonhamente felizes de todos os lados, os pássaros cantavam. Tudo em verde, zinco e roupas úmidas no varal. Para a ressaca, fotofobia, termofobia, melofobia. Tudo vindo dos outros, é veneno.

Como de costume, o domingo começava com Lourival lavando a louça suntuosa e imunda de alguma patuscada da noite anterior. Lavava tudo soltando entre dentes trincados toda sorte de injúrias contra os gringos mimados e os bebuns moradores eternos do cortiço. Acostumado com a lida de acampamento, Lourival primeiro lavava toda a louça, deixava-a secando e, para amenizar o calor do dia e a sujeira largada na noite anterior por bebuns desastrados e cachorros de intestinos soltos por ração vagabunda, ele iniciava a limpeza do espaço comum dessa parte do cortiço.

Do meu quarto era possível escutar em detalhes cada movimento seu. Seja passando da pia, atravessando pelo varal cheio de roupas sujas esticadas para dissipar o fedor impregnado, seja entrando no banheiro, abrindo a porta da geladeira, acendendo um cigarro ou estalando os chinelos na escada até o andar de cima. Nossa região do cortiço é praticamente o subsolo, pensurado na ponta do morro, o último andar, em descenço, da entrada do cortiço. E Lourival conhece cada canto, cada história deste lugar como se o dominasse há eras. É possível sentir esse conhecimento dele em cada fio de bigode, em cada dente podre, na liberdade com que circula pelo ambiente... Eis que o velho homem sobe as escadas.

Saía em busca de alguma vassoura que sempre estava perdida pela casa e voltava sempre com alguma bem gasta e imprestável, reclamando do descuido geral com os utensílios de uso coletivo. Começava varrendo do alto da escada, juntava os restos de comida, as baratas mortas e os toletes grotescos que os cachorros largavam pelos cantos. Muitas vezes, no alto da madrugada, trôpegos, alguns se esqueciam dessas dádivas caninas. Pisavam sem querer, espalhavam a merda pelo recinto e por seus quartos. No dia seguinte, ressaqueados, destruídos, tinham de por todos os móveis para fora e lavar com água abundante todo o quarto, putos da vida, quando não o banheiro também.

Os dois cachorros, coitados, há anos comiam a mesma ração barata, inssossa e asquerosa que o dono do cortiço lhes servia. Vezenquando alguém corria o risco de dar algum resto de comida, o que rendia um dia inteiro de perseguição débil de ambos atrás do benfeitor em busca de mais comida de verdade. Comiam de tudo. Ovo, pão, queijo, cascas e restos de comida não aproveitados... qualquer coisa era melhor que aquela ração horrenda. O pior é que esta ração causava-lhes uma desinteria eterna que provocava uma merda gigantesca, brilhante, gordurosa e cremosa que, como manteiga no pão quente, se espalhava com facilidade pelo chão e só saía com muita água.

Lourival tinha de juntar estes toletes de merda, os restos de comida recusadas pelos cachorros, as baratas mutantes da lapa que recorriam ao cortiço como cemitério ritual e as guimbas de cigarros, vedar tudo em sacolas plásticas de mercado e dispensá-las na lixeira da rua, pela enorme quantidade de moscas e pequenos insetos voadores atraídos por estas iguarias. Voltava com irritação febril. Enchia baldes e baldes de água e começava longa esfregação, usando algum sabão em pó de qualidade duvidosa e preço promocional, para trazer a dignidade de volta àquela feliz zona do cortiço.

Talvez por ser o seu subsolo e limite, aquela região da vila também costumava agregar grande contingente de pessoas. Não vou me dar à infrutíferas analogias filosóficas, até mesmo pela própria metodologia de quem vou usar de exemplo, mas aquela zona, por tão limítrofe inclusive com o próprio bairro, quase caindo de Santa Teresa e parando nas esquinas fedendo a mijo da Lapa, pregado no morro, aquele puxadinho improvisado e minúsculo parecia aconchegante quase à bachelardiana. Velhos alcóolatras desempregados vinham pedir dinheiro emprestado a Lourival, não tão jovens rapazes vinham jogar xadrez, parte dos moradores dos outros andares vinha cozinhar ou guardar alimentos na geladeira coletiva...

Lourival terminava a limpeza com seu corpo senil reluzindo suor, um mal humor irreparável até o primeiro gole de cachaça. Tomava uma ducha, ligava seu rádio e, como bom mineiro apreciador de cachaça, tirava de algum esconderijo seu mini-pet de pinga, por seu atual contexto econômico e geográfico, Caninha da Roça, de cheiro inenarrável, vomitolento de antemão por pensamento. Cortava algumas rodelas de limão e, sem açúcar, iniciava seu ritual dominical de embriaguez e um possível bate-boca ao final do dia com algum dos indolentes que participara da patuscada na noite anterior e que largara toda a sua área imunda.

Começava a beber, sentado ao lado da mesa de ferro, dessas de botequim antes da explosão do plástico pós-Collor, e, à medida que se animava com a música e o álcool, desencadeava a feitura do almoço. Lourival prepara um carré divino que, muitas vezes, parece ficar melhor proporcionalmente ao grau de sua embriaguez. Tempera-o com esmero, enquanto bica sua cachacinha e deixa as tiras de carne descansando por entre especiarias escolhidas à dedo. Outra especialidade do Lourival é o feijão. Em noites de sábado que ninguém fica no cortiço e o pobre don não tem dinheiro, ele separa vasta sorte de carnes, deixa-as de molho para dessalgar, dorme bastante bêbado e acorda cedo, ainda embriagado pela noite anterior, para concluir sua alquimia.

É metódico, talvez como todo homem sozinho, com ritual apurado. Creio que se cozinhar sóbrio, sua comida sairá uma lavagem. Por seus métodos, acaba pagando o pato, e tendo de fazer toda a faxina dominical, já que todos ainda dormem, com a cabeça latejando e o quarto empesteado a álcool da noite anterior. Exceto o Salviano, que está virado, insone, ouvido pregado na porta, tentando escutar o que falam dele. Para o Salviano, os finais de semana são um completo e absoluto inferno pessoal. Sabendo que todos ficam em casa boa parte do tempo, vive um sentimento de desespero pela inevitabilidade de que todos estão conspirando para seu infortúnio.

Um bravo e solitário lobo contra uma multidão de gentios de modos boçais e sem a menor inclinação artística como a dele, Salviano fica paralisado, sente-se a minoria oprimida. Com a rigidez e concentração de um faquir, prostra-se dentro do quarto em absoluto silêncio, apenas o radinho ligado, numa meditação profunda buscando encontrar do lado de fora, na confusão de latidos, grunhidos e outros urros dos animais que circulam pelo cortiço, o seu nome, o retalho que possa ser costurado em sua sofisticada teoria de golpe que armam contra ele. Mija dentro de garrafas plásticas guardadas para estes dias, faz uma garrafa de café para não pregar os olhos e recolhe o máximo de mantimentos não perecíveis em sua cabana para a empreitada, como se fosse para a floresta.

Essa floresta, mental, terror psicológico, o toma de maneira arrebatada. Sua viagem xamanística pelos confins escuros de seu quarto imundo e sua mente paranóica o tomam de vertigem, fazendo às vezes o exercício insuportável. Desiste das meditações, sai do quarto a reclamar do barulho, falando barbaridades, escarrando no chão, como neste dia, em que cometeu a estúpida atitude de regar o telhado de zinco com água, ‘para amenizar o calor’ – criando goteiras nos quatro quartos, na zona de convivência e gerando ódio coletivo de sua estúpida presença. O exército de um homem só.

Nesta ocasião do refresco do telhado, vários homens estavam reunidos ao redor do fogão, filando cigarros uns dos outros, pegando cervejas a fiado na venda do cortiço, escutando música e conversando. O pobre diabo sai, indignado da gritaria que fazem em sua região. Entretanto, é a única cozinha coletiva para 14 quartos (destes, apenas quatro possuem algo próximo de uma cozinha, com fogareiro, pia improvisada e geladeira). Domingo é um dia familiar e para estes homens o cortiço é sua família, postiça, provisória, quando da solidão.

Os mais velhos contam de suas aventuras sexuais, os mais jovens jogam xadrez, fala-se das montanhas de dinheiro que ninguém ganha de verdade, fala-se da comida, da partida de futebol, conversa-se sobre a péssima qualidade do cortiço e os moradores incríveis que por lá passaram antes. E enquanto isso a embriaguez flutua numa crescente. O cretino do Salviano sai do quarto, todo amassado, indignado daquela festa, da comunhão das almas. Tenta algumas abordagens, mal-sucedidas, feitas na defensiva, dificultando qualquer simpatia da parte daqueles que estão ali. Chega conversando sobre o barulho que todos fazem, sobre a gritaria, a bagunça, aquela pequena multidão apinhada.

Depois de amplamente ignorado individualmente, inicia um infrutífero debate em voz alta, rasgando o ambiente, cortandos os petits comitées em curso, convocando alguém, aleatoriamente, para uma conversação, quase um desafio. Em geral convoca ao Lourival, seu rival íntimo, e dessa vez não fora diferente. Comentara algo acerca da música alta que Hector, o vizinho do quarto da frente do Salviano, escutava de forma inconveniente, um assunto recorrente. Entretanto, fizera isso em presença de Hector, estratégia estúpida e deliberada, fazendo-se como que ignorando a odorenta e ilustre presença do conviva peruano.

Rapidamente é rechaçado coletivamente, sai caminhando por entre as pessoas de forma débil, molóide, como se fosse um mendigo ébrio. Escarra ao lado do fogão, vai até a pia, sonoramente repete o processo. Uma tensão se cria. Ele fala em voz alta sobre o calor, “meu, como está quente hoje...”. Ele é como o bandido que entra no bar de velho oeste fazendo gracejos contra todos os outros homens que ali estão, desafiando-os. Sobe as escadas reclamando do calor. Do andar inferior, é possível ver Salviano passando de um lado para o outro, exatamente como um mendigo, trôpego, débil, conversando sozinho, discursando para uma platéia imaginária sobre a moral, o mundo e os bons costumes.

Seus cambitos vão cruzando a fresta do alto da escada, arrastando cadeiras, fazendo ruído, resmungando alto para que alguma platéia o acompanhe. Estão todos entretidos com seus afazeres dominicais, aquela vida lenta, pacata e ressaqueada de domingos de muito sol. É lamentável e ao mesmo tempo dadivosa a presença de Salviano. Sua debilidade física e mental são prova de que é possível se virar, mesmo caminhando rumo à completa errância. Mas isso só se saberá com o passar dos anos, donde não tenho a menor intenção de encontrá-lo... Enquanto vai mourejando dentro de sua cabeça, passando os dias como uma pessoa desagradável para a maioria das pessoas ao seu redor, ele segue vivendo, apesar das dívidas, apesar da fome, apesar de tudo.

Durante a semana, como Lourival está trabalhando, Salviano se sente um pouco senhor de seus domínios. Pode sair, pensar na poesia das coisas, andar pela casa conversando com as pessoas, refletir sobre a poesia do mundo e os textos que lhe foram encomendados pelos irmãos Barreto e por Almodóvar. Infelizmente só ele não compreende que as pessoas, em geral, não querem conversar com ele. Travou uma amizade completamente estúpida com Cauã, um tipo insuportável. Cauã mora no andar de cima, aluga um quarto e faz uso da cozinha e do banheiro coletivo do andar debaixo.

Musicista, criado em família de classe média-alta, Cauã acredita estar mudando o mundo. Largou o conforto da casa dos pais no Leblon, largou o conforto de comer carne, largou o conforto de um trabalho careta. Se auto-denominaria um abnegado, se essa parcela de adolescentes facistas nascidos no Leblon soubessem da existência da idéia de abnegação. Continua um típico menininho mimado do Leblon. Apenas não pega ondinha, loiras oxigenadas e nem mora no aprazível bairro de Manoel Carlos. Entretanto, odeia negros, pobres e toda a escória da sociedade com asco implícito em sua fala esotérica e pseudo-filosófica.

Sua amizade com Salviano serve apenas para que ele possa fazer chacota da cara do infeliz. Escuta-o sério e faz comentários cretinos na mesma seriedade, mas com o intuito de fazer-lhe troça. Salviano sempre leva-o muito em consideração e raramente percebe que está sendo fortemente zoado. Certa vez, um vizinho nosso, um alcóolatra que tinha a mãe louca e era obrigado, por uma combinação que fizera com o pai (para que este bancasse o aluguel no cortiço), a ter de cuidar da mãe semana sim, semana não, ligou para os bombeiros falando que a mãe tivera um ataque. Ela apenas estava louca, como sempre. Ele, entretanto, queria sair para beber. A opção mais rápida, para ele, se não me engano conterrâneo de Cauã, era acessar algum aparelho do Estado.

Contida por enfermeiros, a mulher fora atirada dentro de uma ambulância sob protestos de não ser louca. Cauã, vizinho de porta do rapaz alcóolatra, fora enfático: “Não somos obrigados a conviver com uma louca, o Estado que se vire para cuidar disso” (ou qualquer coisa do tipo que crê na existência do Estado para a higienização social).
Esta mulher era um fenômeno. Irritadiça, de modos intempestivos, passava os dias numa solidão profunda, exceto por seu rádio ligado no volume máximo, sempre fazendo longos discursos saudosos sobre a vida de estrela de tv que ela tivera. Certa vez, o alcóolatra (que não lembro o nome e é tão insignificante que sequer vou inventar um nome para ele) saíra para beber e o Lourival tentara fazer graça com a louca. Um pequeno caos se instalou no cortiço. Os temores de que aquele jovem atlético e alcóolatra da zona sul pudesse tentar matar o velho Lourival tomou a todos de pânico.

Entretanto, ovo contado no cú da galinha, Lourival sabia que estava a mexer com uma louca e que, afinal, se o rapagão chegasse bêbado e escutasse a mãe falar que o Lourival tentara comê-la, ele simplesmente ignoraria o que a velha tivesse dito como ignora 99,99999% de tudo o que sua mãe lhe diz. Lourival neste dia se recolheu para seu quarto, continuou tomando sua pinguinha, vendo programa esportivo da tv aberta e adormeceu de porta entreaberta, como uma criança, exalando o hálito dos sozinhos e dos cornos.

O alcóolatra e Cauã são duas conjugações de um mesmo processo. Jovens, estúpidos, com idéias facistas na cabeça. Ambos hare-boa, pseudo-hippies, amantes dos anos sessenta, de Janis Joplin, os astros estão confluindo, a natureza é linda e eu sou o cara legal, fizeram com que as quadraturas astrais os jogasse como vizinhos neste cortiço de Santa Teresa – oh, um bairro tão cool. Talvez exatamente por tantas coincidências cósmicas, pouco se falavam entre si. Compartilhavam, afinal, o segredo sinistro de terem nascido cheios da grana e quererem parecer favela hype, artistas de Santa, gente descolada e desapegada de bens materiais - senão jamais poderiam pegar artistas gringas.

Cauã, talvez movido pelo terror deste segredo em comum que ambos partilhavam, odiava ao alcóolatra. Cauã também era incapaz de ser amigo dos moradores eternos do cortiço. Gente preta e pobre (duas coisas que ele odeia sem declarar, obviamente, fazendo sempre um bom mocismo de dar bons-dias para todos, como aprendera com sua mãe na forma de lidar com subalternos como zeladores, empregadas domésticas e todas as outras profissões servis), ele usa da artimanha retórica para conviver em paz com sua ideologia impregnada. Odeia a Lourival porque o acha um ladrão e de moral duvidosa, as únicas coisas que um negro suburbano (no caso do Lourival, pior! Imigrante e idoso) pode ter lapidado em seu espírito durante toda a vida.

Nesta ressaqueada jornada dominical, tivera longa briga com Lourival por conta de
panelas e facas. Este sempre lavou a louça que todos deixam para lavar depois (por bebedeira, preguiça crônica ou pela existência do velhote) pelo motivo óbvio de pratos e panelas imundas serem alvo de ratos. Desde que cheguei ao cortiço, o próprio Lourival veio me falar que se eu sentisse falta de algum utensílio doméstico que o fosse procurar pois talvez ele tivesse lavado e guardado com ele para evitar que baratas e ratos ficassem passeando pelos objetos de cozinha. Isso sempre fora um ponto comum. Nesta noite de domingo, de debate esportivo na televisão aberta, Lourival bêbado, trôpego e feliz, estava escutando música brega altíssima, encerrando suas religiosas atividades etílicas dominicais.

Cauã, que não encontrava uma panela sua e muito irritadinho pela felicidade do velho, descera batendo os pezinhos no chão e fora dar piti para o velhote, falando que tinha sido roubado por ele. Como bom leblonense (ou lebloeta, sei lá) facista, tratou com o tipo como se deve tratar um tipo desses, em sua cosmologia: “aí mermão, tô cansado de tu, você é um ladrão e eu quero minha panela de volta” e ficou lá, cheio de raivinha gritando para o homem. O dono do cortiço, que achava que a beleza inata e zona sulzice do rapaz embelezam e engradecem em inteligência a sua ‘pousada’, fora tirar satisfações com o velho também.

Lourival apenas repetiu como das dezenas vezes que falara com todos, que apenas guardara a tal panela. Entretanto, isso manchou mais uma vez a relação entre os dois, que já estava bem gasta de outros carnavais. Essa fora mais uma das milhares de brechas que Salviano tivera para se aproximar de Cauã e tê-lo como cúmplice das atrocidades do velho. Ao Salviano, não se tem o que culpar o medo e o homo-erotismo que projeta no velho Lourival: Salviano, em crise de idade, aos seus quarenta e poucos anos, desempregado e remotamente cônscio de seu fracasso como artista, percebe que Lourival se sustenta como velho e é trabalhador, de um ofício rude e mal-remunerado.

Um artista como Salviano se enternece ao constatar cenário tão abjeto e, quiçá, brejeiro. Desse tipo de cena, ele encontra alimento para a alma intempestiva de artista. Aquelas mãos senis e calejadas mourejando dia após dia, suas idéias rudes, é tudo tão atraente, belo, poético... entretanto Salviano precisa conviver com este ícone proletário todos os dias. O que seria um ideal poético, vira a dura realidade, um enfadonho casamento. Ele gosta dos povos bravios, sendo ele um intelectual preocupado com as massas, vindo dela. Entretanto, quebra todo o romantismo essa convivência. Sem contar que o velho pode ser, por questões etárias, uma projeção horrenda dele mesmo, que quer ser um rapazola para sempre. São apenas conjecturas...

Só sei que a imagem daquele senhor de idade, imigrante das Minas Gerais, negro, pobre, sub-empregado, morador eterno do cortiço, alcóolatra e trabalhador, incomoda a Salviano e Cauã de forma especial. Talvez por ambos serem artistas inatos, poetas de uma geração. Cauã pela condição de macho alfa natural que crê carregar em seus genes. Salviano por seu desejo de ser de uma elite, intelectual e artística, mas também por sua crise de meia-idade e por seu fracasso ululante nessa escalada social.

Salviano, imigrante da Bahia para São Paulo, homem fracassado e tido por muitos, inclusive eu, com um tino natural para a mendicância, vive uma crise de encarar a realidade e viver seu sonho. É incapaz de perceber que o ódio comum que o une a Cauã é o mesmo que faz com que este jamais o considere um amigo seu. Para Cauã, Salviano é apenas um paraíba paspalho que ele pode fazer troça todos os dias, além de, como gorjeta, ter a higienização de consciência de, nalgum momento que for bancar o papel de alternativo (como quando fica de urubu ao redor das jovenzinhas que freqüentam a Lapa), poder falar que até tem um amigo paraíba – seu personal-pobre-de-estimação.

Pois bem. Apesar desse cenário, Salviano procura a Cauã como a um amigo, um guru, ou um tipo de alguma superioridade. Escuta a vasta defecação oral que Cauã profere com esmero e imponência, ensinando-o as formas como ele, Cauã, acredita serem as mais toscas para levar donzelas para a cama. Cauã sempre faz o joguinho com Salviano de falar, com muita austeridade, exatamente o contrário do que ele acha certo – sendo, de qualquer jeito, uma grande merda. Talvez seja uma forma de proteção, de evitar que um tipo reles possa ter comportamentos parecidos com os de tão dintinto e desapegado rapaz.

A chama desta amizade é alimentada sempre pelo ódio ao velho mineiro. Geralmente Cauã cede atenção ao pobre diabo enquanto está lavando roupas, cortando as unhas ou cozinhando alguma coisa vegetariana, pasta inssossa cheia de temperos, orgânica e de origem indiana. Como Salviano tem todo o tempo do mundo desde que abandonara o ofício plebeu de garçom para se dedicar exclusivamente à arte, ele tinha basicamente as horas do mundo para andar atrás de Cauã perguntando-lhe coisas sobre a terra, os céus, as estrelas e xoxotas, bem como tentar relatar a grande perseguição que sofre por parte de Lourival. Neste fatídico domingo, entretanto, ele não poderia contar com a ajuda de seu fiel amigo, que dormia, enquanto o panacão ligava a mangueira, golfando água de forma débil até ganhar consistência.

A pinga já rolava solta no andar debaixo, devia ser no máximo meio-dia. Daqueles cambitos que circulavam no andar de cima resmungando, viera a genial idéia de regar o telhado do cortiço, para amenizar o calor dominical. Salviano ligara a mangueira, despejara litros e litros de água, até que milhares de goteiras cagaram a comida, o xadrez e a tarde que se iniciava no cortiço. Plantação de zinco à vista no cortiço. Ponto pro maluco e telhado regado.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

do fundo da madrugada do andarahy

Mundos são fundados, postos em existência plena e inteira, para se destruírem assim que nascem. O tempo me engole, companheiro, e torno-me seu escravo, seu servo, enquanto os dias passam voando, galopante. Ultimamente, vivo no silêncio da madrugada. Posso passar o dia inteiro acordado, quando a madrugada me chama, estou insone, estou desperto, estou entregue a seu silêncio e encanto. Silêncio que aqui, megalópole-chiqueiro de seis milhões de almas, nunca é a ausência de sonoridades. Os ônibus rasgam o asfalto errante e sinuoso na frente de casa o tempo inteiro.
São gritos, guerras, estampidos de armas. Curral de escravos há séculos, a energia ancestral dessa cidade tem um componente pusilânime, sedento por mais caos. São muitas pessoas infelizes, companheiro, são pessoas que, muito mais que minha terra natal, passam a vida toda sonhando com uma experiência como a de Thoreau, Walden, ir pro meio do mato, sair da Babilônia. Aqui só os personagens de Manoel Carlos são felizes com o Rio da novela das oito. Todos odeiam isso aqui. Todos querem uma cabana na floresta, floresta que não existe senão em sonhos, com forno de microondas, miojo, tevê a cabo, internet banda larga e muito sódio na alimentação.
Os carros rodam com as buzinas sempre pressionadas, berrando, desgrenhados, loucos, trânsito caótico. São milhões de pessoas nas ruas, infelizes, descontentes, insatisfeitas de uma forma muito pitoresca com relação ao mundo.

Era o Vieira

As condições pra alugar o apartamento são impossíveis...
Depósito de três meses adiantados (mais de mil reais pra dar na hora... Até parece que alguém que vai alugar uma kit de 300 pratas tem esse montante...) e contrato de 30 meses.
Tem proprietário que pergunta onde trabalho, se tenho carteira. Quando digo que não, lamentam e desligam a ligação.
Tem coisa boa, que precisa de fiador local.
Tem coisa barata, mas que é na baixa da égua.
Tem muita coisa ruim no começo da zona sul, que é habitável...Mas exigindo tantos pré-requisitos, fica quase impossível.
Um amigo meu se mudará pra cá em três meses. Começo de março começam umas aulas dele.
Pensei em esperar, alugo um quarto

domingo, 27 de setembro de 2009

Alugo linda kit, com vista suntuosa

“Agora uma coisa lhe digo. O cara solteiro que aluga uma kit dessa, se fosse eu na sua idade, teria a obrigação de comer muita mulher”. Ele estava sentado num banco alto, uma perna levemente flexionada, as mãos unidas como se segurasse algo de valor, a cabeça apontada para um horizonte imaginário que antevia na parede branca da casa. Este é o meu senhorio, falando assim para mim e sua esposa, 15 anos mais nova, sentada ao seu lado. Essa foi a sabatina para que eu conseguisse sair de um quarto e me mudar pra outro com uma cozinha minúscula e um banheiro improvisado.

A forma como falava era como se me alugasse um apartamento na mansão de playboy, numa casa suntuosa e cheia de mulheres ao redor, e não aquela casa velha com homens seminus. Ele tem quarenta anos e se intitula administrador de imóveis. Não sei qual foi seu exercício fraudulento para conseguir morar nesse cortiço. Ele simplesmente parece trocar a moradia que consegue pelo serviço de “administrar” duas casas velhas em Santa Teresa, fazendo um extra nas pequenas extorsões que faz no preço de cada quarto. Sempre que está só e encontra um grupo de homens, tenta falar de suas aventuras sexuais com mulheres muito mais espetaculares que sua esposa.

Esta é muito jovem, morou aqui com o namorado, ambos projetos fracassados de hippies e, um dia, reza a lenda falada a boca pequena, ele pegou todo o dinheiro dela e caiu fora. Ela, sem dinheiro para pagar, foi se explicar a Stéfano, que resolveu lhe dar uma moradia provisória. Dessa moradia provisória, vieram gêmeos e os dois decidiram se casar. Celina é uma estúpida, fracamente desgarrada de sua eterna adolescência hippie pela obrigação de esposa, que cultua de uma forma velada, com argumentos de ter escolhido (e não ter sido escolhida) viver com um homem maduro e vivido.

Ambos fazem um casal no mínimo patético. Pelas obrigações domésticas de administrarem um cortiço, não possuem uma vida social externa, exceto Celina que possui alguns fantasmas do passado que vezenquando vêm perambular pela casa acompanhados dos dois. Estes aproveitam a ocasião para circular pelos lugares como fazendeiros ricos e patriarcais mostrando suas posses humanas e materiais. Possuem uma relação ambígua com os moradores mais antigos, passando do ódio para a admiração em instantes, numa dependência compartilhada de serem os mais antigos num lugar que transpira o momentâneo.

Talvez pela completa clausura e abnegação do mundo pela obrigação de manterem a incrível casa velha, imunda e mal cuidada, acreditam piamente que seus imóveis são ótimos. Isso talvez seja corroborado pela incrível rotatividade de estrangeiros que não parecem se incomodar tanto com o aspecto mambembe de toda a casa, fato que alimenta uma aura favelada e turística ímpar. Crêem que podem intrometer na sua vida, dar-lhe ordens ou achar coisas, como Stéfano me falando da minha obrigação de comer muitas mulheres, a partir do momento que passei a alugar o lixo da “kit” dele, ou quando Celina veio me dar instruções de como fumar dentro de casa, para não estragar os móveis “novos”, que eles colocaram no quarto para mim.

Stéfano é um tipo corpulento e vaidoso. Acredita-se incrivelmente inteligente e bem sucedido, em relação com os moradores fixos e eternos do cortiço. Atravessa um processo de calvície acentuado e tenta de todas as formas dissimular a força da genética e do tempo em sua cabeça. Quando fala, emposta a voz como se fosse um patriarca a falar para seus filhos, netos e parentes menores e administra uma modulação na voz que o faz sempre parecer saber de todos os assuntos que versa, sempre dando palestras que vão de futebol até a metafísica. Anda pela casa de forma grosseira e tipicamente autoritária. Este lugar é seu território e, tirando as gordas quantias que os estrangeiros que passam curtíssimas temporadas lhes paga, garantindo toda a sua inteligência em saber roubar dinheiro dos estrangeiros, aos outros ele decreta, em geral, uma relação de vassalos. Ordena aos moradores mais antigos e eternos desempregados que façam pequenos reparos na casa, ajudem com mudanças, ou então os mandam tocar música, quando têm convidados.

O mais antigo morador daqui é sambista e possui um projeto para iniciar um bloco de carnaval, o que estimulou bastante Stéfano. Este já planeja iniciar conversas na prefeitura para que o bloco saia a partir do cortiço e desça até a lapa, já pensando nas estratégias de monopolizar a venda de bebidas alcoólicas e, talvez, ganhar um dinheiro extra com o turismo, pensando na perspectiva de ter um bloco carnavalesco saído não somente de Santa Teresa, mas de sua casa. No carnaval passado, fizera da entrada do cortiço um grande botequim, cheio de homens ébrios na entrada da casa, uma perfeita bomba relógio para que a qualquer momento tivesse alguma briga.

Celina decidiu que é uma dona de casa e co-administradora de um empreendimento imobiliário. Vive enclausurada no cortiço, engordando muito, cuidando dos filhos junto com uma menina negra que pegaram para criar em casa. Esse é o discurso proferido por ela (para não soar uma Amélia que engravidou sem querer quando foi fazer um agrado para o cara que lhe deu abrigo) para não soar um aliciamento e trabalho de uma menor. Passa os dias vendo televisão, por onde pode se inteirar do mundo (cruel e) real e ter certeza de que realmente o planeta é uma merda. Seus discursos são patéticos e sua ideologia fede a naftalina. Num misto hippie e fascista, ela vai compondo um mini tratado do espírito humano e toda a sujeira que a rodeia, o que a obriga a ser sempre bondosa e generosa.

Antenada com a última moda nos Estados Unidos e Europa, já tem a certeza de que morrerá de gripe suína, pois a vila recebe muitos estrangeiros. Poderá ter uma morte digna e hype, seguindo as melhores tendências mundiais. Não existe termo melhor para descrevê-la, além de cretina. Propõe assuntos esdrúxulos e os versa como se discursasse para uma platéia, mau hábito que aprendeu com o marido. Veio falar-me outro dia, que as crianças estão perdidas, de acordo com a legislação brasileira, porque o Estatuto da Criança e do Adolescente é um instrumento permissivo para que as crianças que serão os futuros mendigos do país não sejam castigadas da forma merecida. Criança pobre precisa apanhar, mas este instrumento absurdo que o governo criou para proteger pequenos bandidos não as deixa trabalhar para ajudar à pátria e tampouco permite os educativos castigos corporais que essas crianças merecem por não terem tido pais que tivessem garantido essa parte elementar da educação de um ser humano.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Superfreak

Depois de subir a ladeira, o calçamento urbano de pedras grandes, quadradas, virar à esquerda onde os ônibus quase acertam o muro da casa do vizinho, enquanto sobem alucinados, cruzando a mata semi-virgem de Santa Teresa, subo a escadaria larga de matinho crescendo entre as pedras, quase tapete de gramíneas no meio daquelas pedras-ruínas de casario velho e antiquado, de rocambolesmos e rococós, de flautas e sotaques ítalo-franco-hispânicos, torno à direita e caminho pelas escamas de pedra da serpente que corta o bairro. As ruas do bairro são sinuosas, curvilíneas, vão se acomodando aos morros, à topografia, intensa obra de engenharia pra mim, do planalto central, ver essas gentes se agarrando na beirada de morros.

E caminho, caminho, caminho, pro alto e avante. Vou derretendo, até chegar somente o palito do picolé, no alto do morro, faça sol, chuva, neve. Sempre se derrete enquanto sobe pelas ruas-serpentes. Entro em casa e a primeira coisa que me toma de assalto é a suntuosa vista da cidade, urbana, concreto, luzes, aquela grande escultura. De longe, a cidade está tranqüila, linda, serena e imóvel. E depois de chegar ao cume da cidade, vou descendo as escadas de casa, cravada na beiradinha do abismo que cai na lapa, nas ruas imundas. Desço as escadas com as baratas voadoras da lapa, transgênicas, x-men, insetos gigantes de seriado japonês, voadores, pestilentos, batendo na minha cara.

E vão surgindo os sons e aromas da vida em cortiço, as pessoas passando, seminuas, suarentas, cansadas, desempregadas, carentes. Todas são carentes, todas querem demais conversar contigo, mesmo com você tentando de todas as formas escapar delas. São como o suor, impregnam no corpo, viscosos, falando sem parar, te acompanhando enquanto você tenta encontrar o refúgio do seu quarto. E quando você o alcança, batendo a porta contra os corpos de gentes falando-lhe absurdos e querendo um pouquinho de atenção, você é tomado do calor do quarto abafado, do telhado de amianto, das janelas que precisam ficar fechadas para prevenir a praga das baratas mutantes.

Torna-se a abrir a porta do quarto e estão todos lá, dezenas de homens carentes, querendo conversar, querendo falar das coisas da vida, da vida de acampamento de exército, de homofóbicos, sexistas, anti-semitas. O convívio em cortiço com homens é o espaço privilegiado para acompanhar o pior das opiniões da humanidade. Todas as conversações mais asquerosas e nojentas são tratadas ali. Os homens agem como gorilas. Velhotes carentes, caras que têm vergonha de estarem na casa dos quarenta anos e agem como meninos chorões.

Reza a lenda que essa terra de homens já teve muitas mulheres, que elas circulavam tranqüilamente por aqui, também seminuas, apaixonando esses caras, apaixonadas por eles, falando línguas estranhas. Não consigo imaginar mulher alguma com esses homens. Enquanto isso, escuto um deles falando de mulheres, um dos assuntos preferidos nessas rodas maçônicas, de seita secreta, de homens que só têm à cachaça para recorrer, o carinho maior em suas vidas, acalentando seus corações.

Louco, com desvarios em sua cabeça, escutando uma merda de reggae-rap-dancehall-rocksteady o dia inteiro, toda hora, todo minuto. E ele escutar significa todos escutarem bem alto, bem chato, bem invasivo. E te puxa pela mão, quer lhe mostrar as fotos que alterou em photoshop para parecer mais jovem, quer falar que é amigo de Manu Chao, quer cantar a nova música que fez, uma merda de música que fala que planta uma merda de maconha em casa, lamentar o apartamento abandonado em Ipanema, da vida nojenta e asquerosa de playboy que hoje é vivida pela metade, tendo que morar num quarto minúsculo num cortiço em santa Teresa. Mas em Santa Teresa, que é o que importa. Seu quarto e suas roupas fedem um aroma adocicado, absurdamente nojento, asqueroso, vômito no chão.

Um quarto absurdamente imundo, mal cuidado, feio, desarranjado, projetando todo o caos interno de um cara criado a leite com pêra e ovomaltino, de quem chora que não tem um centavo no bolso, lhe fuma um maço de cigarros, come da tua comida e no dia seguinte chega de adidas de duzentas pratas, novinho em folha e vai para frente do espelho, como uma menininha de quatorze anos, experimentar roupinhas para escolher com qual sair. E sai do quarto, interrompe as conversas dos outros, pede para que opinem como consultores de moda, não escuta a ninguém, volta para o quarto e se troca novamente. Mas, ah, o chapéu está combinando com o tênis. Assim fica parecendo que me preparei para sair de casa, não posso sair. E volta para o quarto de novo, após interromper a conversa dos outros pela segunda vez sem a menor cerimônia.

Enquanto isso o outro trintão desempregado e paranóico (literalmente, clinicamente, quimicamente, psicologicamente, sociologicamente, matematicamente paranóico), versa sobre a queda dos anjos do firmamento, como Edward Gibbon falando da queda do império romano, usando pitadas de sutilezas de uma poética caetânica-glauberiana, um poeta nato, genuíno, dessa coisa atávica sem simbologias, pós-moderna, pós-contemporânea, de relações fluidas e sensações infinitas, entende, bicho? Essa poética do que é e do que não é? Ééééééééé... Ô meu! Bahiano de nascimento, paulista de criação, odeia a ambos, bahianos, paulistas, não é a alma do que ele considera brasileiro, porque o brasileiro é bom, apesar de burro, atrasado, poeta, louco, mendigo, entende, meu? Ééééééé...

E coça o saco, estica bizarramente o pé e o coloca sobre a mesa onde todos comem, para me cochichar que todos na casa são uns porcos nojentos e que caras limpos e asseados como eu e ele inevitavelmente sofreremos vivendo ali. Puxa um grande escarro quase do canal retal de seu ânus e vai cuspir na pia onde se lava a louça ou no ralo em frente à porta do meu quarto. Na mesma pia onde ele acabou de jogar fora toda a borra dos cinco litros de café que ele faz para deixar um mês pegando mosca e mofando dentro de seu quarto também imundo. Em seu quarto, ele guarda garrafinhas plásticas d’água, pois ele odeia sair do quarto em dias frios para mijar, e nesses dias de março no Rio de Janeiro têm feito uns quarenta e cinco graus negativos por vários dias. Ele vai juntando suas garrafinhas cheias de urina no parapeito da janela, até que o vento as empurre para o terreno baldio abaixo da casa. Outro dia o dono do terreno devolveu-lhe algumas garrafinhas cheias de mijo, afinal de contas ele deve ter um apego afetivo pelo mijo dele. Saiu de seu corpo, é quase seu ainda, apesar de não fazer mais parte dele. As zonas de tabu de caras asseados, como eu e ele.

E novamente retorna a Barbie trintona com seu tênis branco e novo, suas roupas imundas e fedidas, para perguntar se assim ele está bem. Olho para ele, meio gordo, as carnes já bem envelhecidas, o rosto cheio de vincos, de quem já bebeu demais e se cuidou pouco, e uma roupinha de adolescente de colégio, um bermudão abaixo da cintura quase mostrando suas bolas, uma camiseta toda recortadinha, milimétrica, para mostrar o leão da tribo de Judá em seu ombro, o bonezinho de lado, como deve ser um jamaicano cantor de dancehall que leva seu estéreo no ombro contrário à aba do boné. Uma boneca (jamaicana) preparada e vestida, de quase quarenta anos. Parece aquelas velhotas de oitenta, noventa anos, com roupinhas de garotinhas, cheias de maquiagem no rosto caquético. E pela milionésima vez falo que está ótimo, ele se convence. Desliga a merda de reggae-dancehall-rocksteady-rap-hip-hop-trip-hop e vai embora, embonecada, pensando na namoradinha adolescente de 25 aninhos, jovem, na flor da idade, com os hormônios à flor da pele, uma tormenta em sua cabeça.

E antes de sair versará longamente sobre as amigas piranhas que ela tem, todas solteiraças, lindas, maravilhosas, sedentas por sexo sujo, saindo com ela, levando-a para o mal caminho, para o caminho do adultério. Vezenquando o desejo dele é mais pelas amigas que pela namorada, muito decidida por ele, apesar do joguinho sujo e infantil de deixar todos os homens a bolinarem e darem em cima dela na frente dele. E ele se sente um velhote, quer mostrar os amigos, a banda de Manu Chao, mas ele teme que ela se deixe ser encantada pelo baterista ou qualquer outro da banda.

E fica o outro trintão, o poeta glauberiano-caetânico, que agora começa a falar que tanto a boneca jamaicana como o velhote que mora na nossa área conspiram contra ele. Afinal, todos estão conspirando para que sua vida seja cheia de infortúnio. Mas ele é guerreiro, ele é mais forte que eles. E enquanto fala que o velhote malvado e doente, cheio de sutilezas e meias-palavras, não deve ser digno da minha confiança, chega o tal. O coroa chega cansado, é o que mais trabalha de nós quatro, seguramente, até porque só trabalhamos eu e ele. Os outros estão desempregados, com muito tempo para tramar todo tipo de conspirações em suas cabeças.

O coroa trabalha em serviços braçais nas casas de ricaços da barra da tijuca. Vê toda a riqueza e pujança dos nojentos da barra todos os dias. Chega-nos contado de casas onde trabalhou fazendo sistemas de vídeo ou segurança como sendo as casas em que ele já morou. Conta os detalhes das suas casas imaginárias, dos dias que ele foi rico, que morou em coberturas em Ipanema, Copacabana e da barra. Conta dos empregos que nunca teve, os empregos que eram de seus patrões, fala como era difícil aquela época, de muito trabalho e muito dinheiro. Hoje ele é feliz desse jeito, na verdade. Morando num barraco imundo com pessoas loucas. Exceto ele é louco, claro, me confessou outro dia.

E começo a perceber como o poeta glauberiano-caetânico estava certo. O homem é sutil. Como um elefante em loja de cristais. Chega falando de mulheres, no palavreado mais asqueroso da face da terra, da forma como as phode, como lhes tira todo o dinheiro, porque mulher não vê um centavo dele. Mulher tem que o sustentar. E fala, fala, fala. O poeta começa a falar também, com uma sutileza de poeta romântico, de como gosta de phoder mulheres, comê-las bem sujo. Não param de falar disso, varam as madrugadas conversando sobre as mulheres espetaculares e cheias da grana que eles comem sempre, que os sustentam, que lhes enchem de presentes, como a caneca com uma impressão “exclusivo do meu grande amor” que o poeta possui.

Este possui uma tensão homoerótica pelo coroa. Fica-o observando o tempo todo e atribui a uma loucura implícita o desejo de sempre estar conversando com ele. Outro dia, enquanto esperava um amigo para sair, ele parou-se ao meu lado e ficou observando de longe o coroa, de shorts de tactel, sem camisa, dando em cima da gordona que possui uma vendinha no andar de cima da casa. Observava-o de olhos brilhando, um sorriso infantil no rosto, braços cruzados, encostado no parapeito do terraço. Virou-me e falou da energia do velhote, que supostamente é muita, e rogava-me que o imaginasse um guitarrista, a energia dele numa banda e ele de guitarrista.

Fitei o coroa de pé, meio corcunda como todos os velhos, encurvado sobre a gordaça bizarra e chamando-a de meu amor, gesticulando com a debilidade física de um velho alcoólatra, e o imaginei vestido como os caras do Kiss, ou então como os caras do Black Sabbath ou do Deep Purple ou então com os cabelos do Morais Moreira ou do Pepeu Gomes. Desde então, sempre que estou deprimido, imagino a energia dele como guitarrista de uma banda. E posso rir um dia inteiro só com isso. Mas para o poeta glauberiano-caetânico, aquele é um sentimento quase íntimo, um fetiche oculto, por um velhote de bigode e dentes podres. Uma paixão no mínimo enternecedora.

Rapidinhas...

Veio de um movimento em parábola, o braço em ângulo de 125° do tronco e o primeiro também a 125° do antebraço, a mão direita espalmada. A palmada seca no lado esquerdo do rosto, levando o pescoço a girar pelo próprio eixo do corpo nuns 45°. Luzes instantaneamente tomaram sua visão em raios partidos. Da ida, rapidamente todo o corpo se realinhou, com todo o nojo e ojeriza por ela. Lobão passou a mão pelo rosto enquanto ela berrava impropérios para ele. Estava satisfeita, sem dúvidas, de levar a cabo uma cena no mínimo picaresca. Mas o que se passava afinal era algo simplesmente patético. Continuou gritando, babando, ébria e descontrolada. Seu amigo, na cadeira ao lado, tentara alguma reação pacificadora. As mesas ao redor que acompanhavam o vômito patético riam agora mais alto, afetados.
Ele tomou o copo de cerveja na mão e levou à boca novamente. Estava quente.

***

Aguardava os vinte e sete andares terem sua revista pelo quadrado de aço até chegar ao térreo. Gado solto no pasto rico de pedrarias portuguesas. Sai o ascensorista, sorriso largo, encostando-se na parede branca sem se conter nem esconder a risada.
- Aí – falando com os outros funcionários em roupa cor de chumbo –, o muleque perguntou o que era preciso fazer pra ter um trabalho como o meu. Sabe o que respondi? É SÓ NÃO ESTUDAR! HAHAHAHAHAHAHAHA...

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Nos trapos d'orange

Nado no fundo do deserto imundo, de paisagens cálidas, efervescentes, de transtornos delirantemente gentis, atrás da forma e força únicas que movem, o anima que permeia toda a plenitude do transbordamento do espírito, em lânguidas línguas de flamejar suave e ao mesmo tempo crepitante, num solilóquio vulgar de têmporas inchadas e indóceis a qualquer flanco de fluidez. Os contornos são retilíneos, quebrados, cubistas, sólidos até demais. E no disforme flagelo das sombras cândidas, a serenidade dos confortos mais íntimos e perenes da satisfação de plúmbeas lembranças que, em sépia interrogação, de simiescas inclinações, demarca o próprio desaparecimento da espécie. Quiçá tenhamos o orvalho da alvorada. Na crueza das pás elétricas, todo o globo é revolvido em espasmos de tentativas de espíritos. Restou-nos tão somente a lágrima dura, expurgo dolorido e danoso das cavidades mais íntimas da nossa vã tristeza momentânea. Espasmos de assombrosa forma retesada, restam suculentas tríades de bromélias feito bocas imundas, torpes, lacrimejantes, tentando dali tudo sufocar, pelo ensurdecedor silêncio da angústia. E lá se foi o caminhão de lixo, às duas da manhã.