segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Nos trapos d'orange

Nado no fundo do deserto imundo, de paisagens cálidas, efervescentes, de transtornos delirantemente gentis, atrás da forma e força únicas que movem, o anima que permeia toda a plenitude do transbordamento do espírito, em lânguidas línguas de flamejar suave e ao mesmo tempo crepitante, num solilóquio vulgar de têmporas inchadas e indóceis a qualquer flanco de fluidez. Os contornos são retilíneos, quebrados, cubistas, sólidos até demais. E no disforme flagelo das sombras cândidas, a serenidade dos confortos mais íntimos e perenes da satisfação de plúmbeas lembranças que, em sépia interrogação, de simiescas inclinações, demarca o próprio desaparecimento da espécie. Quiçá tenhamos o orvalho da alvorada. Na crueza das pás elétricas, todo o globo é revolvido em espasmos de tentativas de espíritos. Restou-nos tão somente a lágrima dura, expurgo dolorido e danoso das cavidades mais íntimas da nossa vã tristeza momentânea. Espasmos de assombrosa forma retesada, restam suculentas tríades de bromélias feito bocas imundas, torpes, lacrimejantes, tentando dali tudo sufocar, pelo ensurdecedor silêncio da angústia. E lá se foi o caminhão de lixo, às duas da manhã.

sábado, 17 de maio de 2008

Lampejos

Eis a onda do momento. Agora, não me resta tempo para nada no mundo. A completa imersão e transbordamento das coisas. Tirando as horas de sono, que não são apenas sono, mas desmaio ante o mundo, tenho um vácuo de 48h semanais dispensadas para um McDonald's destinado apenas à classe A ou para os B que são incapazes de pagar sequer o serviço. Entrei na vida de merda da cidade grande, engolido pela fuligem, fumaça, escapamento de motor, cigarros tragados pelo digital na Lauro Sodré que calculam cada segundo dispensado dos quinze minutos restantes para retornar ao serviço, ébrio de sono, fraco, débil e cansado. Lá se foi o matiz de vivacidade, de alegria e compenetração poética. Vampirizado pelo mundo. O pedaço de carne que vive nalguns metros quadrados, circulando a esmo sem parar, aguardando a hora de partir.

Vive-se imerso na completa perdição mental e afetiva. Foi-se toda a reflexão. O negócio agora é apostar, e alto, no desespero dos dias. Eis o desafio indecifrável. Quando do tempo inteiro, completo e tedioso, o desgosto. Agora, a precisa percepção de que a guilhotina está ali, afiada, sedenta, inteira, atrás de cada canto teu, capaz de decepar ao meio um fio em todo seu comprimento. É a luz fluorescente, é a hipnose sem fim. Estar jogado na própria sorte, ver-se completo na necessidade de inteirar tudo o que lhe falta sem ninguém por perto. E ver-se ontologicamente na sina de algo sem volta. Destruição perene. Das carnes, dos sonhos, dos passos, das solas de sapato. Acabado, frangalhos de noites sem fim. De noites angustiantes das 18h até as 2h. You lose.

O confronto deliberadamente proposto, de cruzar os próprios sonhos vividos comodamente vezenquando com a dura e crua noção cotidiana de acordar, comer, viver, pegar sempre a mesma linha, ver sempre os mesmos prédios, chegar sempre no mesmo lugar e seguir sempre, irredutível, impassível, fazendo crer os próprios enganos, os próprios erros. Não são quaisquer besteiras. São os erros tomados para uma vida inteira. Quando decidimos que vamos correr o risco de errar, vemos que não tem o menor problema, apesar da certeza de que sempre poderemos escapolir, fugir disso tudo e esquecer que houve erro. Pois é. E nessa roda viva, o que importa é esse lirismo calhorda e cínico. Fortalece, seguramente. Porque não é apenas lirismo calhorda e cínico. É paixão, é desprendimento, desterritorialização e etcaetera e tal. Emerge uma leveza que é incrivelmente poliforme.

As coisas se reconformam, tomam novo sabor, como vinho em barrica velha. Porra de sabor abaunilhado, de epicentro babacóide e perfeccionista com o próprio tempo...Impossível ficar sereno com isso tudo sem terapeuta, sem recursos desmoralizadores. O lance mesmo é jogar tudo pro alto, pra fora. Quem se arriscar a pegar, pega. E nisso tudo, uma pureza, uma vivacidade que não tem nada no mundo que é capaz de suprir. Convivo com o completo desejo realizado, sim, e a completa paumolescência da dura realidade das coisas. Fascinante. Encantador. Viajo pelo tempo, colapsado, pulsante, errante, apaixonado. Lindo, lindo, lindo. Em tudo que está errado, sobretudo nas escolhas medonhas e pouco recomendáveis, vejo que o desgaste e a terra seca ainda são-me mais importantes que a porra toda que podia ter rolado.

Seria tão incrível, e por isso penso agora nisso, ter pensado ou imaginado nos porquês de ter feito tudo isso. Turbilhão. Caralho, vivam os turbilhões. Os desarranjos, as conversas tortas, as passagens mal pagas, os descaminhos. Tchau vias de quatro faixas, planos cartesianos. Seríamos incapazes de permanecer unidos. Não podia com nada. Não posso. Alergia. Quem sabe não faço tudo novamente, para outro lado? Agora, que é real, que é possível...Jogar-me por aí, ignorar medos, temores, inseguranças. Ou usá-las exatamente para isso. É incrível a vetorialidade do mundo. Múltipla, incerta, imprecisa. A cabeça flutua, voa para longe, perdida. Arrependo-me, em parte, como em qualquer metade, de ter largado as coisas mais seguras do mundo. Era tudo muito seguro.

É possível dimensionar o problema disso tudo. Era tão seguro, mas tão seguro! Tanto que ainda sigo com essa mesma segurança. Senão não sairia. E ao invés de travellings without movings, heads with wings, and etc, fui me jogar no esgoto, no abismo, no pântano de um subemprego, de uma sub ciudad, megalópole confusa e descompassada. Refez meu passado, minhas lembranças. Os fios de Ariadne tornam-me inversos. Parece que agora busco voltar ao centro do labirinto. Pelo conforto da memória, pela lembrança cálida e candente. Lá se foram os borrões, os espasmos a doença louca que me consumia. Não me lembro de nada, inquieto e inseguro. Paisagem brutal que segue em mim, agora me trazendo segurança, exatamente por ter gastado, consumido tudo. Sabor doce de ilusão. Ai, paisagens doces.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Amor de Carnaval

Amor porteño (gotan project)

Una inquietante mirada de amor porteño
Cálida y cruel
No, no puedo creer que pasó
Que el misterio sensuel de tu risa canyengue
Se apagó

Brindo por esa ilusión de amor porteño
Loco puñal
Dulce y fatal, la nostalgia
De un tiempo pedazo de
Nosotros dos

Y yo que pensaba que no me importaba
Que una caricia podía borrar el color
De mi ciudad ...

El código oculto de esa mirada
Es como una señal
Y no puedo zafar
Un deseo sutil que temblando me viene a buscar

febre

Perdura uma fúria, um desejo intensamente destruidor que corrói minhas entranhas, me faz vestir a capa negra, os caninos se esticarem e sair uivando pela noite. Uivante. Sedento, febril. E da explosão de desencantos, do romper das comportas, do transbordamento delirante, a tentativa anêmica, de trajes rotos, em busca duma gota, concentrada, que refaça a esperança. O desejo de que os fluídos tomem conta novamente de cada artéria, veia, que salve os espaços dantes cheios de tráfego e agora mornos, vagos, remotos para a semeadura do porvir. Falta a vontade de poder. E nada mais.

Foi-se o tempo das grandes colheitas, das terras férteis e irrigadas por gotas gordas d’água que permeavam sonhos apaixonados. Resta, apenas e tão somente, o desejo do resgate daquilo que é atemporal, que pode estar se executando nesse exato momento. Seria incrível ser possível reaver o anima, o plasma das paixões, magma incandescente e ativo. As energias baixaram, as trocas afrouxaram-se, sobrando apenas as migalhas e trapos doutros carnavais. Se a espera se mantiver dolorosa, talvez seja apenas a confirmação óbvia dessa necessidade de transformação completa.

sábado, 10 de maio de 2008

Do após-calipso interno

O sol brilhava a pino, sous le soleil exactement, fazendo todas as cores reluzirem intensas, vívidas. Sol tropical, forte, caudaloso. Derretendo corpos, árvores, cidades inteiras. Nada continha a fúria do sol que a tudo destruía. Cachorros quase desmaiados nos cantos das casas, sofrendo até para respirar. Um vento seco soprava e secava o sal que emanava do corpo. Lá se foi o banho, lá se foi o frescor das idéias. O calor castigava, junto com o brilho do sol. E da altitude de Sobradinho, ao longe, no final do horizonte, nuvens densas, carregadas, pesadas e cheias d’água se preparavam para cair num canto qualquer de Brasília. Não me importava. Sequer sentia a possibilidade de chuva naquele instante, não era capaz de pensar nisso enquanto derretia inteiro.

Fui pro ponto de ônibus, pensando nos trinta reais que tinha na carteira, pensando na hora errada que decidi tomar tal decisão. Podia esperar um começo de mês, podia esperar a melhor ocasião, podia esperar tudo. E assim, novamente, protelaria tudo que consumia a minha mente, meu corpo, meu cotidiano. Já não tinha mais como preparar, como esperar o trem. Assim pensando o tempo passa, e a gente vai ficando pra trás. Não sabia ao certo onde poderia dar tudo isso, se realmente sairia do lugar. Vidas secas, sol escaldante, o caminho de terra e cascalho no meio do gramado mal-cuidado. Cada passo saía errante, sem saber ao certo. De alguma forma, começava a jogar fora alguns mapas mentais, raios de ação.

Ter saído daquela casa, daquele quarto fedendo a cigarro e a cerveja choca levou-me à saturação visual completa. As cores não cabiam em mim. Todos me ignoraram e ignorei a todos. Um silêncio medonho e uma indiferença carregavam o ar quando da minha presença. Não sabia ao certo o que fazer antes de pôr os pés na rua. Tinha juntado umas mudas de roupa na noite anterior, após um incidente numa festa. Estava tudo amassado dentro da mochila. Preparei o que restava, sobretudo de mim mesmo, mas me esqueci de um bocado de coisas. Phoda-se. Mal conseguia pensar. Estava consumido pelo mundo. E tudo permanecia imóvel, ficado na terra, estagnado. Os aromas pesavam sobre o ambiente, minhas coisas, aquele céu que me testemunhou a vida toda.

A primeira necessidade era sair do DF. Desceria para a rodoviária do plano piloto e de lá partiria para Valparaíso. Guardei três maços de cigarros na mochila, fechei esta e fui para o ponto esperar a galera amarela. As poucas pessoas no ponto brilhavam radiantes, milhares de cores quentes, a parada amarela, a grama verde reluzindo, o céu de azul infinito, camisas vermelhas, laranjas, fogo intenso. Perdia-me naquilo tudo, parecia-me tudo demais. O transporte se aproximou, singrando o asfalto prateado que se derretia nos pneus como lâmina cortante. O asfalto oscilava, parecia que estourariam bolhas daquela incandescência. Dentro, o piso laminado e luminoso dava dores de cabeça, o cheiro de óleo diesel me consumindo, o barulho ensurdecedor do motor comendo minha audição.

O ônibus rodava lento, tentando escapar da areia movediça, sacolejante, com urros cansados do motor, como animal abatido, resfolegante. Era possível sentir os suspiros de vencido que o ônibus gritava. Como estávamos a uma parada do ponto final, este se encontrava completamente vazio. E já um tanto derrotado. No ponto seguinte, um homem adentra com uma blusa extremamente branca, gelo, e duas pipas quase psicodélicas pelos desenhos e pela explosão de cores. Era-me impossível pensar. Tudo me engolia. A mochila pesadíssima sobre meu colo parecia um peso de papel tentando me manter firme para não sair planando por aí, do vento louco que entrava pelas janelas recém-abertas. Sentia meu corpo gotejar, a água se formando na superfície da minha pele, e o vento a secar tudo.

Era uma fábrica de sal. Meus braços também brilhavam, minha carne cozinhava lentamente, no vapor daquele domingo, fritava naquele óleo fétido que borbulhava dentro do ônibus. Já estava minimamente temperado para a ocasião, restava-me uma maçã na boca, talvez. Passamos pela rodoviária de Sobradinho, por mais algumas paradas dentro da cidade, cada vez enchendo mais, mais gente subindo, mais calor se fazendo, o carro tentando se livrar das raízes que se formavam em suas rodas. Finalmente alcançamos a rodovia. Simplesmente a entrada nesta trouxe uma longa rajada de vento que levou consigo todo o calor. Tirando o sol impetuoso, a massa de calor havia desaparecido. E de fora, todo o abandono dominical tomando conta do mundo, favorecido pelas irradiações cruéis.

O Período Diluviano

Chuva, chuva, chuva. O caminho até Luziânia foi completamente encharcado e tedioso. Fizemos um longo caminho com pouca visibilidade. A chuva começou e todos, como de costume, fecharam completamente as janelas do ônibus. Uma densa colônia de bactérias devia estar se formando naquele momento, com pessoas tossindo, conversando alto, crianças chorando. Olhava pras pessoas e só sentia hálito quente emanando de seus corpos. Nos sonos, nos peidos, nos risos, no silêncio. Tudo vedado, mal dava para saber o que acontecia do lado de fora. Passava regularmente as costas da mão no vidro, mas rapidamente perdia a pouca visibilidade conseguida. As pessoas oscilavam de acordo com a extensão da viagem, que era longa. Muitos entraram e caíram rapidamente no sono. Poucos quilômetros depois estavam despertas e fazendo algo, seja escutando música, conversando, lendo algo. De tempos em tempos, entravam vendedores/as que perderam tudo, que portam alguma doença grave, que ajudam alguma instituição de caridade, alguém que podia estar roubando mas está lá vendendo aquelas balas, aqueles kits, aqueles adesivos. Parece um longo sistema de caronas e vendas donde tudo conflui perfeitamente para que nunca dois vendedores se encontrem. E enquanto isso, dezenas seguem seu itinerário. No meio do mar de chuva.

As águas engoliam as pistas, os pontos de ônibus, as canelas das pessoas. Era um dilúvio de verão, na terra de 14% de umidade relativa do ar na maior parte do ano. As janelas fechadas e completamente embaçadas tornavam impossível saber ao certo o que acontecia do lado de fora. Mas a impressão latente era de que a qualquer momento poderíamos ser tragados pelo mar que se fazia. Estava sentado na altura de uma das rodas e um imenso leque d’água chegava à minha altura. Tudo começara quando largamos o plano piloto. A partir daí, tornou-se impossível saber qual o caminho que o motorista fazia. Qual fosse o trajeto, seguramente muitas mudanças em cima da hora tiveram de ser feitas. Aquele jogo, digamos, “arrojado”, típico de motoristas de ônibus, de retornos em cima da hora, ultrapassagens completamente improváveis e níveis de velocidade impressionantes para um veículo carregado de gentes. O motorista seguia impassível, talvez porque a viagem é longa e ele teria de fazer de qualquer jeito. Então, acaba tocando o phoda-se. Os passageiros tampouco demonstravam algum interesse por aquele dilúvio. Parecia-me que para eles as coisas não soavam tão curiosas.

Casebres, barracos, cidadelas afundadas n’água, tudo contrastando com o clima da minha partida. Quanto mais nos afastávamos do plano piloto, mais intensa a chuva, mais pobre as casas, maior a penúria para as pessoas se locomoverem. Os canteiros centrais entre as duas vias das rodovias vomitavam para o asfalto uma água densa e barrenta, bem como o fazia também as laterais da pista. Enquanto isso esperava, como as dezenas que se empurravam nas paradas de ônibus de tamanho ínfimo. No entanto, não estava ensopado até os ossos, tinha comigo apenas o tédio da viagem. Dormi. Várias vezes vieram pequenos sonhos que se fundiram com o ambiente do ônibus. Acordava de estalo, sem fazer idéia de onde estava. Partia sem saber ao certo como faria para sair dali. Essa era a única certeza, a de sair dali. Aquela chuva esforçava-se para carregar de fertilidade aquela terra bravia e maldita. Esforço digno. Mas não mais para mim. Precisava cair fora. E urgente. A cidade me absorvia como terra árida sorvendo água. Meu tempo se esgotava, para mim mesmo.

Da varanda

Por cortesia, preciso fumar na varanda do apartamento, de aproximadamente 1m x 0,5m. Não há muito que se fazer. Mesmo porque mal dá para se movimentar. Na sacada, tem um pequeno varal no canto, restando apenas metade do espaço inicial. No começo, sentava-me desconfortavelmente apoiado no vidro que faz fronteira com a sala do apartamento, mas é assaz desafiador para quem perdeu o pouco que tinha de elasticidade nos últimos anos. Mesmo assim, demorei em traçar outra forma de fumar. Enquanto fazia um pequeno contorcionismo, observava os apartamentos de dois prédios que ficam à minha frente e seus jogos sincrônicos de luzes emanadas das televisões, quase todas no mesmo canal – Globo, creio eu. As noites são bem frescas por estas bandas, sobretudo na varanda. Nos últimos dias, chuvas leves encerraram meu expediente com aquele aroma de cimento molhado subindo até o apartamento.

De dia, é possível observar algum gato pingado jogando bola numa das quadras do condomínio ou escutar a gritaria das crianças no colégio, também dentro do condomínio e em frente à sacada. Ficar observando atrás de grades é algo deveras angustiante, sobretudo por me ver, em grande medida, ilhado. Aqui, no Recreio/Barra, são muito quilômetros longe de civilização. Viver aqui deve ser algo realmente penoso para a mente e o espírito, pois tudo é forçosamente elitista, apartado do mundo. Um misto de estátua da liberdade com arquitetura e urbanismo Miami-Plano-Piloto-Sudoeste-Goiânia. Não paro de pensar em Umberto Eco, na irrealidade do cotidiano. Avenidas largas, com aspecto de rodovia, que me lembram cidades americanas, um Road-movie estilo Paris-Texas ou Little Miss Sunshine. E por todos os cantos ruas gringas, shoppings por todos os lados, prédios que basta mirá-los para saber que cada apartamento custa milhões de reais. Talvez tenha me caído perfeito isso aqui, como uma transição. Ainda me sinto em Brasília quando estou nessa região.

O impacto da cidade não me vem tão grande, porque sinto-me em Metrópolis do Fritz Lang, faltando mesmo só aquela trilha sonora chatíssima. Chegar de noite, de ônibus, aqui, é ver os milhares de pobres que saem de dentro dos shoppings, das casas, dos uniformes, dos baldes e vassouras, dos sorrisos mecânicos, para alguma favela da região. Muita Brasília na veia. O tempo corre e já sei que em breve estarei fora daqui, só não sei para onde vou ainda. E de lotações com funk carioca na veia, de ônibus de direção arrojadíssima e caminhos sinuosos, vou pingando nos lugares, vou sentindo a cidade, vou sendo compreendido por ela e vice-versa. Eu e o tempo acertaremos nossos ponteiros. A grana vai se esvaindo, agonizante, escapando dos dedos, nas passagens, nos metrôs, nos sanduíches vagabundos de dois reais. E em toda parte vejo gente, mulheres, homens, mulheres deliciosas, velhos fumantes inveterados.

Os velhos e velhas fumantes são fascinantes. Pela forma como seguram seus cigarros, como andam, como os acende, sua senilidade exposta no hábito de fumar. Nos pontos de ônibus, nos bares imundos, nas calçadas já gastas por milhões de pés e sonhos investidos nessa cidade. Incrível como as pessoas andam. E mesmo assim parece haver um pavor de andanças muito longas. Pedir informação sobre algum lugar um pouco mais distante para ser feito a pé é o suficiente para te forçarem a pegar um ônibus. É tudo muito longe, supostamente. Mal conhecem a nouvelle capital. Mal sabem a necessidade de perseverar na economia. Mas não há discussão.

Decidi por levar uma cadeira para a varanda e testar sua ergonomia dentro de tão pouco espaço. Finalmente fumei decentemente, os pensamentos saíram melhores.

Da colônia penal

Era verossímil abandonar aquele lugar, onde não voltaria a dormir ali e que, seguramente, nunca mais veria aqueles zeladores, aqueles carros, aqueles prédios. Novamente, tudo ficava para trás. Menos mal. Dado o andar da carruagem, aquela era a menor e menos penosa das despedidas, seguramente. Acendeu um cigarro e caminhou com a mochila nas costas, pensando em Teresa se despedindo dele com uma indiferença dominical, nada parecia ter a proporção que justificara sua estada inicial por aquelas bandas.

Toda a movimentação ocorrida nos segundos que se desenrolaram após seu anúncio de que partiria, passava a impressão de que ele iria fazer uma ligação no orelhão do outro lado da rua e que não levaria a chave. Ao fim e ao cabo, era como se ele, de fato, estivesse saindo para fazer uma ligação no orelhão ou comprar cigarros e nunca mais voltaria. Simplesmente nada no mundo parecia sentir aquele desencadear de ações, essa seria, afinal, a diferença para a forma do partir, era acordado que não haveria qualquer espécie de retorno.

E pensar que no exato dia em que partira, duas semanas antes dali, recebera uma ligação à meia-noite, vento seco e frio soprando no posto de gasolina deserto, apenas a voz apaixonada dela. Saudades, desejo libidinoso, carícias sopradas ao pé do ouvido, via celular, mais de mil quilômetros de distância e um arrepio intenso percorrendo o corpo de Lobão. O desejo era muito mais pela distância que por qualquer outra coisa. O distanciamento inevitável e óbvio era o clímax da relação. A possibilidade de visitar e revisitar a memória, costurar das formas mais variadas possíveis a lembrança tornava para cada um suas solidões menos penosas e amenizavam quaisquer de seus problemas cotidianos.

Lobão tinha plena certeza do risco que corria de encontrar a pessoa, digamos, real, que povoava seus sonhos. O choque de encontrar não ele mesmo e seus desvarios elaborados na distância e na fertilidade das idéias era-lhe inevitável e causava-lhe muito temor. Desconhecia Teresa. Não fazia a menor idéia de quem ela era de fato. Tinha a comodidade anterior de que, em breve, receberia sua visita em casa. Agora, ela, situada coincidentemente no meio de seu destino, de sua viagem, era uma grande incógnita, para não dizer terror.

Cada vez que pensava nela, perdurava o horror da certeza de estar sonhando com coisas que ele optou por lembrar, inventar e criar como sendo ela. Na fuga do brilho eterno de uma mente sem lembranças, não sabia como interpretá-la e como encontrá-la. Dentro do caminhão, quando pensava nela, cheio de desejo e tesão, tentava propor para si mesmo que talvez o melhor fosse não encontrá-la e, simplesmente, mantê-la um sonho cálido e delicioso em sua memória. Evitaria o transtorno do encontro concreto de mundos, gostos e caprichos com os quais jamais fora posto a conviver. Mas a paixão era maior. Muito maior.

Acabou por inseri-la no objetivo de sua partida, quando decidiu arriscar-se a evitar mais uma carona, aguardar mais quatro, cinco dias, em São Paulo, nas histórias que inventava para os caminhoneiros com o desejo de deixar para trás o Lobão que fora e a história que tivera. Agora, não tinha estudo, mal tinha família, não tinha dinheiro, perdera tudo e estava grávido de um sonho. Esse parto não aconteceria na estrada, tinha lugar marcado e não importava o dia e a hora, o tempo que fosse demorar. Agora, era tudo uma nova história sendo escrita.

Teresa passara os três últimos dias fora, o que vinha impedindo a partida de Lobão e tornando, para este, mais forçosa a sua saída. Teresa não suportava mais a presença dele em sua casa. Tinha dias que sequer trocava palavras após as investidas de Lobão por alguma conversa. Ela acordava, fumava um baseado em silêncio enquanto preparava seu desjejum, saía para sua aula, retornava no final da tarde, acendia outro baseado que religiosamente fumava na sala fingindo alguma naturalidade e indiferença em frente ao computador ou à televisão, comia alguma coisa, entrava para o quarto e dormia.

Lobão costumava preparar alguma refeição para a noite, que ela fazia questão de tocar somente no dia seguinte, e o resto do dia ou passava procurando emprego ou sentado na sala, como um típico desempregado, aguardando alguma ligação salvadora para uma entrevista nalgum lugar. Desde que Teresa passou a evitá-lo, tomou o colchão que estava na sala como seu e restringia seu raio de ação dentro da casa para o âmbito compreendido entre as minúsculas sala, cozinha e banheiro.

Sentia uma solidão intensa e profunda quando não descia para o centro da cidade, encurralado num prédio gradeado, dentro de um condomínio cercado, num bairro visivelmente elitizado, distante de tudo e temeroso do mundo real. Tomava uns dez banhos de sol diários, quando precisava se deslocar até a sacada de 1,0X0,50m para fumar. Fechava a porta de vidro tapada com uma colcha que dava para dentro do apartamento, agachava-se ou buscava de dentro uma cadeira de plástico, trazia para perto de si uma latinha de cerveja que improvisara como cinzeiro e fumava em completo silêncio.

Ali, restava observar a vista restrita e abafada por outro prédio rigorosamente idêntico ao que morava, posicionado de forma a bloquear a paisagem. Sobrava-lhe observar este ou os fundos de um colégio público rigorosamente cuidado e limpo para os filhos dos funcionários que trabalham nas redondezas. Ficava como que expulso daquele mundo onde estava, flutuando numa bolha de concreto e grades de alumínio, dividindo o pequeno espaço com um secador de roupas e alheio daquilo, como que numa bolha anti-nuclear ou qualquer coisa do tipo.

Sempre sorvia o cigarro sendo capaz de escutar este queimar em alto e bom som, mas nunca ouvia ruído algum de Teresa. Sentia-se um imenso estorvo para ela, mas era-lhe impossível, naquela altura do campeonato, esnobar aquela permissividade incomodada de Teresa para procurar outro canto onde esperar algum emprego aparecer. Seu dinheiro, já muito parco, minguava aceleradamente. Os movimentos eram cada vez mais cuidadosos e manter-se imóvel era a decisão mais sábia para prolongar a chance que ele dava à sorte.

Desejava a languidez e a serenidade de uma estátua ou de um daqueles loucos que param todo o restante de suas vidas e meditam até a morte apenas em uma posição. Desejava mais a estátua não como presença imóvel e sem desejos, mas para evitar o embaraço e desagrado que sua presença causava. Queria, também, a brecha de poder se movimentar nalgum momento, mesmo que apenas o diafragma. O cigarro, os passos, os bocejos, se tornavam tão pesados e escandalosos que para ele era insuportável prosseguir naquela casa enquanto existência e convivência.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

A estrada (as primeiras horas de caminhão)


Subi no caminhão de Valter, que me ensinou uma gambiarra pra poder usar o cinto de segurança. Ele estava sem o prendedor do cinto e, portanto, eu tinha de me sentar sobre a ponta que passa pela cintura e passar a ponta que cruza o tórax por trás de mim e colocá-la na posição correta. Esse foi nosso assunto inicial. Poucas palavras. Ele tinha acabado de comprar uma mídia de mp3 com os 25 volumes da discografia completa do Milionário e José Rico e estava ansioso para tocar. Colocou altíssimo e me empolguei com a energia do camarada. Saímos do posto e ele disse que precisava passar num lugar antes de partir, mas que era coisa rápida.

Atravessamos a rodovia, entramos numa estrada de terra bem estreita e ladeada de barracos. O caminhão era gigantesco para a trilha que fazíamos e chacoalhava intensamente na estrada íngreme. Valter não hesitava e dirigia com muito ‘arrojo’, pra não dizer inconseqüência. Muitas crianças brincavam ao redor e bastava colocar a cabeça para fora da janela que era possível ver a enorme nuvem de poeira que ele largava para trás. Depois de costurar muitos caminhos estreitos e inesperados, parou vizinho a um barraco em construção e buzinou. Um senhor veio e conversou brevemente com ele sobre algum retorno com cargas, papo que não me incluía e que evitei escutar.

Valter estava elétrico. Era seu ex-sogro, que viera pra cá morar com a filha. Passou-me imediatamente a contar-me seu histórico amoroso, enquanto dirigia loucamente pelas estradas de terra. Quando alcançou a rodovia, um lugar onde ele podia arroxar o buriti sem medos, retomou uma direção sóbria e contínua, não passando nunca dos 80 km/h. A partir daí, as três ou quatro horas seguintes foram muito Milionário e José Rico e a desastrosa vida amorosa de Valter. Ambas as coisas agora se conectavam profundamente. Aquele som meio caipira, de corno apaixonado, abandonado, a fodelança completa de quem fica para trás enquanto as pessoas vão arriscar outros quinhões.

A estrada seguia infinita. Fitava constantemente a quantidade de plantações, os sistemas de irrigação, as colheitadeiras estacionadas, os caminhões lentíssimos, as filas indianas. Não me era necessário olhar Valter para a conversa fluir, as coisas que ele me falava, falaria mesmo sozinho. Precisava urgentemente desabafar. A ex-esposa decidiu tentar vida nova em Brasília, cagando na cabeça e nos sentimentos de Valter. Ela lhe comunicou, ele tentou conversar, mas ela estava decidida e, portanto, deixou-a partir. Essa foi a versão informada por ele, completamente diversa do desespero indisfarçável que ele vivia do abandono da última companheira.

Valter é nitidamente um camarada passional e espalhafatoso. O colega de serviço que lhe contou minha saga me mostrou para ele. Mesmo assim, fez questão de gritar no pátio das transportadoras que estava partindo para São Paulo e que se alguém precisasse de carona precisava se apresentar imediatamente. No almoço, eram apenas gracejos para as garçonetes. Chamava-as de meu amor, perguntava para uma delas, que tem um filho pequeno, como estava o ‘Valtinho’, dizia que ia tirá-las de lá e dar-lhes uma vida melhor. Tudo isso falado aos berros, pouco se importando com o fato de uma das meninas estar casada com um dos caminhoneiros que estava no pátio.

Comia avidamente, não parava de falar e de sinalizar para os conhecidos. Quando terminou de almoçar, conversou longamente com o dono da lanchonete sobre a comida, o tempero desta e a carne de panela estar horrenda. Ria alto e em tudo parecia investir um sentimento exageradamente agitado em tudo. Saiu pelo pátio conversando com todos, fazendo piadas e rindo pelas orelhas. Magro, um pouco mais queimado de sol que eu, cheio de pequenas verrugas nas maçãs do rosto, essas verruguinhas que pendem como se fosse um excesso de pele, tipo as que o Pixinguinha tinha na cara. Tenho umas dessas na cara, também, que minha mãe me dizia que, na terra dela, era sinal de ‘sangue de preto’. Os incríveis laboratórios de DNA do interior das Minas Gerais.

A conversa tinha um vetor muito bem definido. Valter falava de seus fracassos amorosos e eu escutava completamente calado. No início, tentei abrir a boca, mas ele estava cagando para o que eu pensava. Logo passei apenas a escutar e ele ficou muitíssimo satisfeito, falando pelos cotovelos. Suas histórias, repetidas à exaustão, e a estrada, também repetida demais em sua paisagem depois de algum tempo, não tinham lá muita emoção e logo estava com um sono incontrolável. O caminhão rodava lento e austero, mesmo completamente vazio e com a urgência de Valter chegar à São Paulo. Uma hora, virei a cara pro lado da estrada e dormi pesadamente, sem sonho, sem nada.

domingo, 2 de março de 2008

Rio Ah! Um

Meu time acabava de demonstrar sinais claros de que a segunda divisão estava cada vez mais próxima, enquanto eu tomava uma cerveja, sozinho, diga-se de passagem, na companhia de Judy. Não conseguia decifrar exatamente o que ela queria, atendendo minha ligação, mostrando-se solícita em me encontrar recém-chegado ao Rio de Janeiro. Ela estava linda, deslumbrante. O Corinthians, jogando igual um time de segunda divisão. Em poucas horas saberia do meu desenrolar com ela. Em poucos dias saberia o desfecho tenebroso de meu time.

Tomei duas cervejas rapidamente, o que me deixou levemente bêbado e com a perspectiva de ter uma caganeira, porque a cerveja sempre ficava quente no meio do caminho, sem camisinha, semi-gelada, tomada sozinha. A mina estava inquieta, olhava nos olhos, fugia dos meus depois d’algum tempo, deixava o colo a mostra, ria de orelha a orelha, facilitava o assunto, mas eu nunca sabia se era da mesma perspectiva que compartilhávamos. Sempre alguma reticência após meu esforço descomunal em tentar manter vigor no assunto, interesse desmedido por tudo que propúnhamos. Qualquer assunto eu me esforçava por achar interessante e provocava tempestades de palavras, era capaz da minha mandíbula cair.

Judy tem muito daquele esquerdismo patético de centro acadêmico, um encantamento juvenil pela palavra e pela heráldica esquerdista na forma mais opaca possível, que torna movimento punk, anarquia, maoísmo, leninismo, e todo o resto de teorias e vivências de esquerda algo sem brilho, são apenas e sempre os mesmos símbolos, as mesmas coisas, as estátuas de Lênin, as bandeiras vermelhas, as foices, martelos, livros de capa vermelha, tudo farinha do mesmo saco. E no meio disso uma dificuldade crônica de inserir qualquer outra perspectiva que fuja aos manuais do que consideram de esquerda... Sei lá, phoda-se tudo isso. Mas creio que pra traduzir esse esquema pitoresco-carioca, é possível utilizar-se do estudante de DCE caricaturizado nalguma novela global.

E meu Corinthians continuava lá, contra a cruz-de-malta, agonizando, num Pacaembu lotado, esperançoso d’alguma mudança. A coisa não estava boa. Parecia um bando de perna-de-pau, eu poderia ser titular num time daqueles. Olhava pouco para a televisão, mas bastava um relance para ver o quão desanimador estava a situação. Mas dentro disso, pouco me importava... Estava num bar cheio de cocotas, a mina toda gostosinha na minha mesa, sorrisinho dela de orelha-a-orelha, tinha alguma esperança, mesmo com a mina num papo brabo de abstemia. Minha estratégia era beber por mim e por ela, confluindo os desejos de dois bebuns pra poder emplacar uma phoda massa como da outra vez.

Enquanto bebia, via o jogo, falava pelos cotovelos, falava pelos pulsos que quase caíam da minha mão, admirava a gostozinha na minha frente, as delícias que circulavam ao meu redor, sonhava com uma nova trepada com ela, meses depois, revigorado, sedento, e tinha de mirar no celular, na expectativa da chegada de Biaphra, que vinha de Brasília pra se encontrar comigo. Supostamente era pra ele ter chegado, mas enquanto nada disso acontecia, esperava por ele, esperava para mandar uma desculpa bem dada para não recebê-lo na Cinelândia às 22h e pouco, orientá-lo a chegar no bar onde estava, o fim do arco-íris – da Lapa. Ficava cada vez mais bêbado, quando pedi a caipiroska e tomei-a quase que de um trago, puro açúcar, puro fiapo de limão, pura vodka barata e pedi outra. E pedi mais outra.

Judy recebeu um telefonema, falou demoradamente, um fiapo de renovação tomou conta de si mesma. A irmã fedida dela que o pobre Tibério encarou para me ajudar da vez anterior que nos conhecemos, que teve de dar garras homéricos e gastar sua melhor lábia rebelde para encantá-la, estava a chegar com seu namoradinho. Judy quase saltitava de emoção, seus olhinhos brilhavam. Bastou que ela desligasse o telefone para que duas amigas dela aparecessem e, sem a menor cerimônia, sentassem conosco. O Corinthians estava lá, na televisão, apanhando. Sentaram-se as duas, com um terceiro tipo, e se regozijaram do clube cruz-maltino estar a vencer. Fui longamente zoado. Fui longamente sorriso amarelo. Fui longamente desesperançado de uma phoda decente, fui longamente preparado para escutar ondas tsunâmicas de barbaridades.

Sinto-me completamente desmotivado, repetindo os cenários dantes encantadores, agora mera tentativa de resgate d’algo intenso, parece que tudo míngua. Da ponta de desgosto, tento recuperar algum fio jazzístico, que reencontre a força que esvai de mim no momento, torno a buscar a pulsão mais intensa que vomitava ébrio de mim doutra vez. A cidade de coisas velhas, de histórias loucas, de cartas marcadas, parece não mais me encantar, o filho do modernismo, das linhas retas, dos traços duros, das árvores tortas, do tédio com T, das mãos calejadas para a modernidade. Phoda-se. Biaphra chega, Biaphra escreve, Biaphra traz um fio d’esperança pra novos contornos da noite. Biaphra que do Centro, desce de táxi até o arco-íris errado, para a granja das loucas, para as frangas perdidas, que lhe vistoriam dos pés à cabeça.

Saio correndo, no meio de gentes, postes, carros, roquenrou, samba de playboy, putas, travecos, urbanos, jogo do bicho noturno, solitários, mesa vazia de novidade sem o forasteiro provinciano do interior. Tropeço nas pessoas, nas mágoas, nos risos, nos beijos, nos bêbados, com a face lívida, com o cigarro na mão, sem fôlego, até Biaphra. Abraço, apertado, sem ar, sufocado, alegria, desespero, agitação, loucura. Temos nove horas até a prova, temos cervejas gelando para nós, temos todos os bêbados, todas as xoxotas, todas as putas, todos os sorrisos para nós. Suas bolsas, suas roupas, seus dinheiros, nossos caminhos, nossos desencontros de ruas boêmias, de calçadas imundas, de mendigos dormindo no chão, de poças de lama. O riso é descontrolado, a alegria toma conta de mim. Até a zoação sobre o Corinthians me alegra, um fio de familiaridade paira no ar.

Entramos numa crescência, infinita, desmedida. Sentamos no pote de ouro do final do arco-íris, falamos desmedidamente. I'm a street walking cheetah with a heart full of napalm. As cervejas vertem aos borbotões sobre os copos, a fiel grita desesperada na televisão, a desgraça e a alegria suprema encontram-se fugidias na mesa do bar. A amiguinha de Judy, da pele mais alva de fidelidade seletiva apenas contra toscos, podres e fodidos, desmancha-se em sorrisos e interesses sobre Biaphra, mas este sequer percebe. Judy quer me apresentar de qualquer maneira para o namorado da irmã, militante d’alguma merda, ‘amigo’ de alguém importante do movimento que, infelizmente, ele troca o nome pelo de alguma ministra. Mas a revolução carioca, a revolução rede globo, não tem problemas com esses erros, as pessoas chegam a ser parecidas em sua perspectiva revolucionária.

Passo a fazer o teste da militância, o American Idol da esquerda, donde sou testado se conheço da realidade brasileira, se conheço todos os movimentos sociais que existem no país, se estou a par de tudo o que acontece no mundo e na ideologia de esquerda, enquanto a fedida da namorada do cara e irmã de Judy fica lá, com seus olhinhos brilhando, apaixonada, vendo seu Prestes fazendo a revolução na mesa de bar, as barbaridades mais revolucionárias do mundo, estamos em 68, quase que num misto de guerrilha na selva e de intelectualidade francesa discutindo eufórica, na Champs-Elysées, as primaveras, os tanques. Massacre intelectual. E o cara lá, com a barba ao redor da boca suja de espuma branca e fedorenta de cerveja choca, tentando me massacrar com os olhos, mirando fixo, querendo me testar, querendo notoriedade, querendo ser comentado no escritório do movimento de Brasília.

Estica um cartão, da ponta dos dedos amarelados de fumar trevo como se estivesse na selva boliviana. Seus olhos brilham, bem como todo o restante da mesa, da parte carioca, que jura fazer a revolução sentada em bares elitistas no revitalizado reduto boêmio da cidade. Da mão esticada, dirige-se até a garrafa de cerveja recém-chegada e verte metade desta dentro de sua latinha já imunda, amassada, choca. A heráldica esquerdista, o arquétipo do militante, desgrenhado, desregrado, barbudo, sujo. Sua cocota quer atenção, eu estou cagando pra ele, quero a atenção de Judy, que trava um papo qualquer com Biaphra. Largo os dois em suas carícias ‘rebeldes’ e torno a exalar sexo, sêmen, língua, saliva, mordida. Mas Judy precisa contar, contar que este homem com quem conversei já foi personagem de livro, já foi cabra marcado pra morrer, blábláblá... E lá vamos nós rumo à embriaguez completa. Bebo, bebo, bebo.

Fica pra domingo a decisão final, o golpe de misericórdia, a tensão completa para o descenso do meu querido time, que sai sem eu nem perceber da televisão. Só me restou a certeza, incrédula, mas inevitável, de mais uma derrota. De repente, um zilhão de coisas passam despercebidas, fico pesado, os movimentos alterados. O tempo rodou num instante e agora a boca da madrugada se abre inteira, larga, sedenta, quer me comer inteiro, sem dentes, sem nada, como se eu fosse a cerveja que me pôs nesse momento de embriaguez insana na noite carioca. Biaphra estava lá, sorrisos, gracejos, cansaço, óculos imundos, cagando para a prova do dia seguinte. Propusemos a nós mesmos jogar alto, apostar muito na madrugada, donde tiraríamos alguma bala ou farelo para revigorar na prova de manhã cedo. Fomos. E quem vai, quer, está lá, domina, deseja, é o ponto irradiador dos milhões de vetores que escapam pelo mundo.

Judy decide partir, para meu completo e embriagado desgosto. Venceu-me pelo cansaço, deixou-me sem beijo, sem phoda épica, deixou-me com seus amigos que estou a cagar em suas cabeças. Foi-se, cabelos ao vento, bunda maravilhosa dançando para a direção errada, longe de mim. Biaphra rapidamente me repreendeu, buscou recuperar meus princípios mais agressivos e sexuais possíveis; breve, mas incisiva palestra sobre quem realmente sou, ou deveria ser. Levanto com pouca confiança, quase que empurrado por mim mesmo, pelo estigma que costurei pra mim mesmo, e fui atrás de Judy, atropelando os milhões de pessoas que circulavam a Lapa do trecho do bar até sua casa. Dos meus olhos, ela brilha, visível, emana alguma energia sexual das minhas lembranças, de nossos encontros d’outros carnavais.

Alcanço com um dedo seu ombro direito, acompanho seu passo pelo lado esquerdo, gracejo, rio, tento convencê-la de me deixar acompanhá-la, sob o argumento mais antiquado (mas não menos convincente), de fazer-lhe companhia, de jogar mais uns instantes de conversa fora, de aproveitar cada instante de minha estadia na ciudad, da possibilidade de sua inebriante presença. E da sinfonia de risos, fragmentos de conversas, buzinas, carros, polícias, pedintes, bêbados, vou com um nervosismo tomando conta de mim, peso enorme sobre os meus ombros, minha cabeça pesa uma tonelada, sinto-me um juvenil. Muita pressão que sai de mim e volta pra mim, que sai de mim e vai pra ela. Péssima a conversa, lembrança entrecortada por pausas ocultas que minha mente optou por inserir para me poupar d’algum vexame. Sou incapaz de lembrar mais da metade de nossa conversa no trajeto de poucos minutos.

Restou-me, apenas, de alguma concretude, a lembrança da entrada daquele prédio, daquela recusa da primeira vez de nossos beijos; de sua mão no meu pau, de minha mão em todo seu corpo, no meio da rua, no meio das mesas, no meio dos garçons, no meio das putas e travecos, que ela decidiu recusar meu convite para subir até sua casa, do ódio que senti pelo trabalho que ela tinha me dado naquela primeira noite, da minha completa falta de expectativa que sequer vislumbrou encontros posteriores tão intensos, graves, sexuais, orgasmo, gozo, vinho, coquetel. Pressão. Olhos nos olhos, mais nada para dizer, a pergunta que não quer calar fica selada num beijo de canto de boca, de 75% ou mais de nossas bocas, que não me soam a nada, que não me despertam a nada. Parece que pesquei algo, não sei como explicar, mas faltou, inclusive, o gosto.

Lá se foi ela porta adentro, lá me vou eu, arrasado, embriagado, na noite maravilhosa, cheio de patacas para gastar, desgostoso, momentaneamente desencantado, percorrendo as imundas ruas da lapa quando esbarro nas amigas de Judy, no meio da rua, que deveriam estar no bar. As frangas cacarejam encantadas sobre como Judy finalmente acertou, arrumando um cara como eu, que isso era incrível, que tenho tudo a ver com ela e etcaetera e tal. I’m gonna get stoned and run around. E ajo miúdo, como um bêbado decadente, soluço para as moças que nada aconteceu. Quero ir embora dali imediatamente. Sou posto contra a parede. Como assim vocês não têm nada?? Você não a beijou? E tudo vira um grande interrogatório, um desencadear de indignação exageradamente disparada sobre mim. Convido-as a retornarem ao bar, preciso ir, não quero deixar Biaphra sozinho, preciso me livrar delas, de Judy, da repentina pressão. Saio.

Atravesso as calçadas apertadas, uma opressão embriagada, preciso esquecer imediatamente disso tudo, voltar minha mente para a suntuosidade da cidade-monstro, deixar-me ser lido por ela, ser vivido por ela, por suas pulsações e inusitabilidades. Parecia não escutar nada fora de mim, não sentia nada externo. Da porta do bar, de primeira, não localizo Biaphra, que num instante me chama de outra mesa, donde está sentado com dois caras levemente embriagados. Sento-me com eles, que se apresentam, arquitetos, um foi professor do outro na faculdade e agora trabalham juntos, enlouquecem juntos. O coroa é Carlos, que pelo alto grau de loucura e disponibilidade para conversar e dar-nos a sensação de familiaridade, apelido de Carlão imediatamente. O outro é Ávalos, jovem, calado, observador. Não imaginava isso, confesso que, de início, tive uma sensação de desapontamento de pararmos numa mesa com dois caras bebuns.

No entanto, aqui começa a virada da noite, o mergulho. Sobretudo porque com Biaphra ao meu lado sinto que minha energia cresce, flui solta, despejo meu encantamento em relação ao mundo com força, rio caudaloso, e meus medos que deveriam se duplicar com os medos dos outros desaparecem e acredito tornar-me fortaleza para estes também. Não sentia medo das ruas, das praças vazias, das pessoas, dos desconhecidos, da madrugada a pé, de nada. É direção embriagada, em alta velocidade, costurando carros e furando sinais perigosos. Não era apenas o álcool, não era apenas a vontade de querer, as coisas se sobrepunham, mal dava tempo de pensar. Carlão está completamente embriagado, pudim de cachaça, calças gastas, rotas, roupa imunda, querendo impressões nossas sobre Brasília, sobre o concreto aparente.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

No balanço

Carlão, sem grana, decidiu aceitar o bico mixuruca de cuidar da exposição meia-boca de Eros. Em casa, de bobeira, recebeu uma ligação de Martinha Maconha, namorada de Eros que conhecia Carlão por meio de sua prima Valéria, louca das idéias e que trabalhava junto dela num escritório de negócios obscuros, cheios de rendas, cortinas de chitão, bebidas e gringos que não paravam de vir e voltar do Brasil, sempre com muitas notas verdes para gastar.

-Carlos?

-Oi.

-Então. Martinha, lembra de mim?

-Martinha?

-Isso, casa da Valéria, “Não façamos disso um drama”.

“Não façamos disso um drama, eu tenho uma revelação a fazer”, Carlão berrou com pouca confiança no momento exato de inspiração imbecilóide enquanto Valéria se enlouquecia com Eros ao averiguar que no celular dele tinha a seguinte inscrição enviada para uma mulher qualquer: “Quero te chupar inteirinha agora”. Eros, mais cara de galinha, impossível, com os braços cruzados e uma falsa expressão de serenidade, dizia para Martinha que ela podia ir embora naquela hora mesmo se acreditava que aquela mensagem realmente fora enviada por ele; Contorno mais inesperado e imbecil possível fora a brecha para Carlão entrar na história em defesa do filho-da-puta, de graça, e se intrometer na conversa em favor do picareta, toda ocasião pode valer a tentativa mesmo que gratuitamente, “só pra exercitar”, como diria o poeta.

Nunca vira ambos em sua vida e só aparecera em casa de Valéria porque beberia uns tragos de graça, sem esperança, sem ter o que fazer. E quando vira a cara chapada de Martinha, sabia que ela apenas queria ser enganada, tem gente que gosta de escutar versões imbecis sobre o mundo e aceitá-las como plausíveis, o tipo idiota de existência terrena que quer apenas escutar alguma resposta sobre as coisas. Daquelas que se você estiver tomando café expresso no copo americano e disser que toma uma caracu ela acredita, e ainda corrobora com a versão estúpida dizendo que a fumaça do copo é do tanto que a cerveja está gelada e que a espuminha marrom na parede do copo é o resíduo da bebida. Mas, claro, ninguém toma expresso no copo americano, apenas em xicrinhas de porcelana chinesa compradas no contrabando. Teoria da conspiração, você anda pensando em muita merda.

Carlão sentira amor por aquela reação tão corajosa e estúpida, sobretudo por ser feita num contexto em que todos conhecem o camarada, bem como sua postura sobre as coisas. Arriscar-se dessa forma, mesmo que fazendo papel de imbecil, mas com ninguém tendo a pertinácia de questioná-lo, é muito ousada, é a prova cabal do medo coletivo de romper com as estruturas gregárias de pensamento e, por isso mesmo, usar-se delas e atacar a todos, indigna as pessoas e ao mesmo tempo não tem contra-resposta alguma porque as mesmas borram as calças quando alguém cutuca a cordinha de náilon esticada em palitos de sorvete construídas para mantermos relacionamentos “saudáveis” para uns com os outros.

As caixas de som berravam no vácuo do silêncio feito na sala com a reação de Martinha. Ninguém sabia como manter a estrutura das coisas, queriam apenas persistir no fato de que ele era um galinha fela da puta e que a mina o adorava e, por isso mesmo, o melhor era tudo permanecer. Carlão achara aquilo tudo lindo, sobretudo pela pomposidade com a qual Eros mantinha aquilo aparentemente há eras. Levantou-se sem hesitar, meio que sem saber o que falar e iniciou uma longa palestra, justificada pela incrível cagada histórica dele ter manuseado o celular do puto minutos antes, telefonezinho cheio de aparatos modernosos e inúteis que faziam o aparelho custar milhares de reais, como toques sensíveis no display, cumprimentos em viva-voz por oito idiomas com vozes e sonoridades que seriam típicas de cada região onde se falam essas línguas estúpidas, elaboração de memorandos com cabeçalho adequado para inserção do órgão ou empresa que assina tal documento e outros maneirismos incrivelmente fascinantes por tamanha futilidade e capacidade de obsolescência das coisas.

Para se ter uma idéia da exclusividade de ter um aparelho desses, é preciso enviar uma carta para a Índia contendo uma resenha de algum livro de Samuel Beckett, uma resposta convincente sobre quais as possibilidades reais de transubstanciação da matéria e os porquês poéticos (que fique claro, nada de linguagem médica) de Mussum ter morrido com o coração inchado se o camarada era um grande babaca fora de seus esquetes sensacionalmente brandos dentro de tamanho preconceito racial protagonizado por um indivíduo que poderia se munir da presença oprimida para fortalecer uma luta contra preconceitos de classe, cor e local de nascimento. Eros era um iluminado e este nem era seu nome real, apenas a resposta da carta que sugeria que ele comprasse o modelo RX-4052 e adotasse um nome menos imbecil que Roberval, que poderia queimar o filme da empresa por ter um cliente com nome tão imbecil e que o faria pegar mais mulheres. Deu certo. Ao contar da carta pra Índia (fora de contexto, que fique claro), numa mesa de bar com cerveja a R$4,50, Martinha, uma admiradora do espiritualismo e decência indianos, apaixonou-se profundamente pelo homem de nome tão charmoso e exótico.

Carlão advogou em nome de alma tão bondosa que permitia que qualquer boçal manuseasse seu celular iluminado correndo riscos de ações grosseiras como essa, assumiu sua mea culpa, mea máxima culpa e sofreu as represálias necessárias por parte de todos ao dizer que estava solto, solteiro, do Rio de Janeiro e que queria comer uma mina gostosa e que achara o nome da doida um nome de mulher gostosa. Se perguntassem a ele qual era o nome da doida, ele não saberia responder. Mas era essa a resposta que todos precisavam para evitar as trabalhosas represálias ao camarada que traria problemas maiores se ficasse longe de Martinha, já que esta encheria o penico dos outros com merdas infindáveis, lamentando-se de toda a ingratidão dele, a burrice dela, mas que continuaria a trepar com o camarada e choraria mais ainda nos ouvidos alheios.

Foi com alívio que todos censuraram a postura infame e infantil de Carlão, nunca mais convidando este maníaco para qualquer evento regado a cocaína, depois maconha, depois mais cocaína para recuperar o efeito desperdiçado pela erva, e mais maconha para recuperar o efeito desperdiçado pelo pó, etc, etc. Carlão caiu no ostracismo por essa galera, o que, apesar de não ter tido qualquer sensação aparente por parte dele, era uma tranqüilidade homérica por privá-lo de conviver com gente tão preocupada em manter uma falsa coesão de galera. Tirando o fato de ter levado um cd louquíssimo de Serge Gainsbourg que depois todos, sem exceção, tiraram onda dizendo para algum terceiro que conheciam há muito tempo, ele não propiciara nada para eles e, tirando o pó de primeira, nada mais propiciaram para ele. Parecia uma relação muito justa de dádivas que se encerravam naquele muquifo vagabundo onde Valéria morava. Mas para Eros não fora apenas um cd que ele pôde mixar depois e comer algumas minas dizendo que conhecia a parte mais refinada da música mais underground francesa (beleza, Serge Gainsbourg era exatamente a imagem disso, um adolescente vestido de punk e moicano, citando Cioran e pregando toda a alternatividade que há no mundo).

Eros era um picareta com traços badernistas que decidira certa vez cagar num pote e usar este para pintar uma tela prum concurso de desenho sobre a antiga Israel, ganhara o tal concurso e muito prestígio entre a criteriosa categoria de aristocratas envolvidos com arte na cosmopolita Brasília. Sem ter quem aceitasse cuidar de sua exposição de arte numa galera de caráter duvidoso, lembrara do primo quebrado de Valéria que vivia desempregado e de casa em casa de amigos “temporariamente, até chegar a vez na classificação para o concurso de motorista de metrô”. Pena que cidade alguma no mundo chamaria o ducentésimo quadragésimo oitavo colocado no concurso municipal para motorista de metrô ou qualquer outra coisa do tipo. A não ser que Carlão matasse pelo menos uns 240 concorrentes que se encontravam em melhor colocação que ele, a decisão mais acertada era procurar algo pra fazer da vida.

Sentira empatia por Carlão, mas apenas isso. Como ele não era muito dado com Valéria, que prometera certa vez contar para Martinha que ele estava dando em cima dela e que sabia de outros milhões de podres para serem revelados por ela para a amiga, Eros sentira que seria inadequado manter contatos por essa sem algum intermediário. Pedira para a namorada conseguir o contato do maluco e ela mesma fazer o convite pedindo que Carlão ligasse para ele se tivesse interesse. Na verdade, Eros estava com o telefone cortado há muitos meses, não poderia fazer a ligação, e Martinha podia ligar do emprego dela, sem contar que a impressão que ele tinha é que passaria a sensação de um homem muito ocupado para tratar de assuntos menores constituintes de parte de sua arte. Tratava sempre de passar a impressão que a única parte que lhe cabia desse processo era o suposto ímpeto criativo.

Carlão tomava uma garrafa de vinho ligeiramente avinagrado que estava largado numa prateleira de casa, de alguma festa na casa dalgum desconhecido. O chão da casa estava completamente imundo e ele havia pisado numa poça d’água que se acumulara no banheiro com algum entupimento obscuro que alternava um processo de cura mágico com inundações periódicas do piso de casa. Seus pés exerciam uma dupla função peculiar naquele dia, espalhando um barro negro pela casa por conta dos pés imundos e criava uma grossa crosta de poeira, uma areia meio grossa que parecia ficar cravejada na sola dos pés. Acordara com uma bruta ressaca e a última coisa que queria pensar era em como evitar o mar de imundície que ele próprio provocava em casa, enquanto se arrastava com a cabeça mais pesada que o próprio corpo e uma dor lancinante pelas pernas e braços que não fazia idéia de como surgira.

Sempre que bebia demais ao ponto de ter amnésias alcoólicas de longas horas numa noite, era certeza que acordaria cheio de dores no corpo. Tinha o estranho hábito de tropeçar, escorregar e enterrar a cara no chão enquanto caía após esses deslizes. O corpo amanhecia cheio de hematomas que eram descobertos sem ele mesmo saber o que provocou essas manifestações. Costuma beber e adquirir a leveza de um bailarino ou ginasta, que o induz ao erro com muito mais facilidade e muitas vezes o que o salva é a mão de deus ou algo invisível que o segura, quem sabe, pela cabeça, e evita danos maiores para ele e os outros ao redor. Subir em mesas, cordas bambas, dirigir, manusear pérfuro-cortantes, segurar crianças de colo, abrir e fechar portas com leveza e suavidade eram fatos que ele sempre exaltava conseguir fazer bem quando está bêbado e que, curiosamente, de fato, sempre conseguia realizar sem qualquer problema, mesmo que causando alguma comoção de quem estava ao redor e isso provocar-lhe certo vaidosismo pois sabia que não erraria.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Dedos

Corro os dedos pela barra da toalha de mesa, os mesmo dedos que percorreram seu braço enquanto conversávamos. De movimento imperceptível, como pluma riscada sobre uma superfície muito sensível, fluía de mim um desejo de leve estimulação. Infelizmente, quanto mais olhávamos um para o outro, menos eu me interessava. E tudo o que saía de sua boca destruía pequenas expectativas cotidianas, devaneios pungentes que de antemão sei que são delírios, no fundo. Se corro esses mesmos dedos que percorreram a toalha de mesa agora no copo de conhaque e me distancio de todos, e saio dessa ilha que é essa mesa cheia de gente e olho para cima como se fosse observado de lá do alto e tento escapar daqui, é porque o fascínio já se foi. E novamente o fascínio escapa pelos dedos desgrenhados e desesperados por agarrar cores, cheiros, sabores. E mais uma vez sobra-me o mesmo roteiro perdido e empoeirado que, decorado eras atrás, já não serve para o propósito de perpetuar uma postura, um modus operandi, uma moral sobre os acontecimentos e detalhes que deles emanam. Deixou de ser lenda, mito, carta de intenções, é horror real, jogo de cartas marcadas. E mais uma vez sentado, e mais uma vez ébrio, e mais uma vez você. Qualquer você, qualquer um, quelque un, formas nocivas de convivência gregária e pré-conservada sem fórmulas escritas, como a receita da titia. Aquela mesma delícia o resto da vida. Que delícia, conhaque, café, cigarro, charuto, pessoas, música, mendigos, garçons, aves, quiromantes, céus, frios, calores, humores. Lindo, lindo demais. Bolos, paçocas, pães-de-queijo, manés-pelados, bombons, biscoitinhos de nata. Delícias secretas que ficam em suspenso, à espera daquele que segure a galinha pelo pescoço, a nau de Colombo que fora encontrada por sereias e monstros míticos e supostamente uma falta de criatividade indígena incapaz de perceber a mesma nau mágica chegando, alertada apenas pelo distinto que pode enxergar além da besta e alienante realidade. Superioridade no sectarismo, talvez mesmo no proselitismo exacerbado em busca de conforto ante à destruição da expectativa de pactos seminais e libidinosos.

Corro os dedos pelo isqueiro, o abandono já está completo, nem a sensação de estar presente existe entre os convivas, invisibilidade social momentânea, flutuar discreto e cavalgar por outras sutilezas, o desenho do rótulo, a tatuagem nas costas, o nó na gravata, a cor do tênis, o detalhe no brinco, a forma da árvore, passatempos ligeiros de desligar da mente e boicote à desagradável obrigação de conjunção de abismos, de corpos que se espatifam no chão feito balão cheio d’água. Acendo o cigarro, fumaça prateada, densa, enevoada e espessa cobrindo, encobrindo minha displicência fingida do lugar. Dedos nos copos, digitais timidamente dilacerando qualquer álibi, registro inconteste de sua própria culpa e responsabilidade, ficha criminal puxada e analisada. Retorno à mesa, o eterno retorno. Chuvas de palavras, explosões de entonações, silêncio abismal. A fita acabou, a agulha risca o papelão do vinil e todos se silenciam, aguardando a velha boa-nova ou pensando na merda mais adequada para escapar à outra rodada de encare ao vazio que toma conta implicitamente da situação. Olham-se uns aos outros, conferem seus copos e garrafas. Trago longo, boca nervosa, asco e tontura lancinante. A cabeça retorna de sua inclinação agora alterada, visivelmente anestesiada, mas chocalizada, fogem os formatos cotidianos. E os olhares trocam o sorriso de assentimento, vago, escandalizado, a não-aceitação por completo. Flui vapor quente da tua boca, que bate na minha cara feito gelo. E já não sei se congelado pelo meu frio por ti ou se pelo seu frio, trocas térmicas muito confusas e inconclusivas. Medos íntimos de incapacidade de compreensão de outras formas de existência, ou de inexistência. Vai saber.

Tudo dura um minuto. Um minuto que vivenciado esperando-se cada segundo dura uma eternidade, eternidade intocável, inescapável como tocar copos, peles, cabelos. Explosões de hormônios, rearranjos internos de açúcares, proteínas e outros que restabelecem a cabeça em outra ordem, nova esperança, novos percursos e novos tempos. Corpo emerge do fundo da cadeira e dele brilham os olhos, as narinas e os narizes-matizes-tatos. Cordas enlaçam a tudo e mesmo sem se ver na obrigação de desvencilho, sabe-se daquilo que prende. E a corda da liberdade bem firme ao pescoço estica-se com o corpo pendendo abaixo e novas investidas suicidas são dispostas como dados correndo no carpete verde duma mesa de apostas, fugindo o tempo, a dignidade e qualquer compreensão de um eu que perdura no tempo, que existiu antes da mesa e que bem possivelmente existirá a seguir, absurdo colossal essa segurança e essa introdução na lógica das coisas lógicas, óbvias completas e sem medos. O dedo erguido, o dosador vertendo lágrimas cor de caramelo, o copo novamente resituado numa posição de afogamento íntimo e de ressaca moral, viagem pelos canos, ápice da transubstanciação do ser alcoolizado, poluído, impuro, nocivo à mesa tão bem posicionada com toalha, pessoas, cadeiras, cardápios, comidas, bebidas e palavras. Tudo bem disposto, harmonizado, desfile militar de palavras jogadas ao vento como papel picado, recepção e honras aos vitoriosos.

E enquanto os dedos se foram, fica o escandaloso corpo estribuchado, pendurado por uma corda, enojando e massacrando presenças tão ilustres e distintas, que nada fizeram para que tal efeito dominó viesse dar nessa escatologia barata e perversa donde fluem espasmos de auto-boicote, auto-destruição e desejo por carinho, afago que desperte para outra configuração de elementos, a incomunicação é completa ao ponto de fugir a lembrança, ficarem resíduos desmontados, desencaixados sobre os fatos, fatos que jamais existiram, sensação de coma induzido para amenizar a insuportável anestesia das coisas tomadas pela onda, pelo vento, pela bactéria, pelo vírus. Tudo transparente, invisível, como os mesmos argumentos de incompreensão à tamanha bravata desnecessária. Tudo fica vulnerável e a cada ataque fico tão vulnerável quanto. Mas tudo tende à destruição, os livros caindo das estantes, os carros pegando fogo, as árvores tombando pesadamente ao chão. E do chão, do chão, do chão, a volta é dura, é penosa, sensação de mutilação do corpo, da mente, da alma pobre e tosca que acaba de ser revelada a partir da fuga da etiqueta, da pompa e circunstância, das danças de salão e das filas de supermercado.