sábado, 10 de maio de 2008

Do após-calipso interno

O sol brilhava a pino, sous le soleil exactement, fazendo todas as cores reluzirem intensas, vívidas. Sol tropical, forte, caudaloso. Derretendo corpos, árvores, cidades inteiras. Nada continha a fúria do sol que a tudo destruía. Cachorros quase desmaiados nos cantos das casas, sofrendo até para respirar. Um vento seco soprava e secava o sal que emanava do corpo. Lá se foi o banho, lá se foi o frescor das idéias. O calor castigava, junto com o brilho do sol. E da altitude de Sobradinho, ao longe, no final do horizonte, nuvens densas, carregadas, pesadas e cheias d’água se preparavam para cair num canto qualquer de Brasília. Não me importava. Sequer sentia a possibilidade de chuva naquele instante, não era capaz de pensar nisso enquanto derretia inteiro.

Fui pro ponto de ônibus, pensando nos trinta reais que tinha na carteira, pensando na hora errada que decidi tomar tal decisão. Podia esperar um começo de mês, podia esperar a melhor ocasião, podia esperar tudo. E assim, novamente, protelaria tudo que consumia a minha mente, meu corpo, meu cotidiano. Já não tinha mais como preparar, como esperar o trem. Assim pensando o tempo passa, e a gente vai ficando pra trás. Não sabia ao certo onde poderia dar tudo isso, se realmente sairia do lugar. Vidas secas, sol escaldante, o caminho de terra e cascalho no meio do gramado mal-cuidado. Cada passo saía errante, sem saber ao certo. De alguma forma, começava a jogar fora alguns mapas mentais, raios de ação.

Ter saído daquela casa, daquele quarto fedendo a cigarro e a cerveja choca levou-me à saturação visual completa. As cores não cabiam em mim. Todos me ignoraram e ignorei a todos. Um silêncio medonho e uma indiferença carregavam o ar quando da minha presença. Não sabia ao certo o que fazer antes de pôr os pés na rua. Tinha juntado umas mudas de roupa na noite anterior, após um incidente numa festa. Estava tudo amassado dentro da mochila. Preparei o que restava, sobretudo de mim mesmo, mas me esqueci de um bocado de coisas. Phoda-se. Mal conseguia pensar. Estava consumido pelo mundo. E tudo permanecia imóvel, ficado na terra, estagnado. Os aromas pesavam sobre o ambiente, minhas coisas, aquele céu que me testemunhou a vida toda.

A primeira necessidade era sair do DF. Desceria para a rodoviária do plano piloto e de lá partiria para Valparaíso. Guardei três maços de cigarros na mochila, fechei esta e fui para o ponto esperar a galera amarela. As poucas pessoas no ponto brilhavam radiantes, milhares de cores quentes, a parada amarela, a grama verde reluzindo, o céu de azul infinito, camisas vermelhas, laranjas, fogo intenso. Perdia-me naquilo tudo, parecia-me tudo demais. O transporte se aproximou, singrando o asfalto prateado que se derretia nos pneus como lâmina cortante. O asfalto oscilava, parecia que estourariam bolhas daquela incandescência. Dentro, o piso laminado e luminoso dava dores de cabeça, o cheiro de óleo diesel me consumindo, o barulho ensurdecedor do motor comendo minha audição.

O ônibus rodava lento, tentando escapar da areia movediça, sacolejante, com urros cansados do motor, como animal abatido, resfolegante. Era possível sentir os suspiros de vencido que o ônibus gritava. Como estávamos a uma parada do ponto final, este se encontrava completamente vazio. E já um tanto derrotado. No ponto seguinte, um homem adentra com uma blusa extremamente branca, gelo, e duas pipas quase psicodélicas pelos desenhos e pela explosão de cores. Era-me impossível pensar. Tudo me engolia. A mochila pesadíssima sobre meu colo parecia um peso de papel tentando me manter firme para não sair planando por aí, do vento louco que entrava pelas janelas recém-abertas. Sentia meu corpo gotejar, a água se formando na superfície da minha pele, e o vento a secar tudo.

Era uma fábrica de sal. Meus braços também brilhavam, minha carne cozinhava lentamente, no vapor daquele domingo, fritava naquele óleo fétido que borbulhava dentro do ônibus. Já estava minimamente temperado para a ocasião, restava-me uma maçã na boca, talvez. Passamos pela rodoviária de Sobradinho, por mais algumas paradas dentro da cidade, cada vez enchendo mais, mais gente subindo, mais calor se fazendo, o carro tentando se livrar das raízes que se formavam em suas rodas. Finalmente alcançamos a rodovia. Simplesmente a entrada nesta trouxe uma longa rajada de vento que levou consigo todo o calor. Tirando o sol impetuoso, a massa de calor havia desaparecido. E de fora, todo o abandono dominical tomando conta do mundo, favorecido pelas irradiações cruéis.