domingo, 24 de fevereiro de 2008

No balanço

Carlão, sem grana, decidiu aceitar o bico mixuruca de cuidar da exposição meia-boca de Eros. Em casa, de bobeira, recebeu uma ligação de Martinha Maconha, namorada de Eros que conhecia Carlão por meio de sua prima Valéria, louca das idéias e que trabalhava junto dela num escritório de negócios obscuros, cheios de rendas, cortinas de chitão, bebidas e gringos que não paravam de vir e voltar do Brasil, sempre com muitas notas verdes para gastar.

-Carlos?

-Oi.

-Então. Martinha, lembra de mim?

-Martinha?

-Isso, casa da Valéria, “Não façamos disso um drama”.

“Não façamos disso um drama, eu tenho uma revelação a fazer”, Carlão berrou com pouca confiança no momento exato de inspiração imbecilóide enquanto Valéria se enlouquecia com Eros ao averiguar que no celular dele tinha a seguinte inscrição enviada para uma mulher qualquer: “Quero te chupar inteirinha agora”. Eros, mais cara de galinha, impossível, com os braços cruzados e uma falsa expressão de serenidade, dizia para Martinha que ela podia ir embora naquela hora mesmo se acreditava que aquela mensagem realmente fora enviada por ele; Contorno mais inesperado e imbecil possível fora a brecha para Carlão entrar na história em defesa do filho-da-puta, de graça, e se intrometer na conversa em favor do picareta, toda ocasião pode valer a tentativa mesmo que gratuitamente, “só pra exercitar”, como diria o poeta.

Nunca vira ambos em sua vida e só aparecera em casa de Valéria porque beberia uns tragos de graça, sem esperança, sem ter o que fazer. E quando vira a cara chapada de Martinha, sabia que ela apenas queria ser enganada, tem gente que gosta de escutar versões imbecis sobre o mundo e aceitá-las como plausíveis, o tipo idiota de existência terrena que quer apenas escutar alguma resposta sobre as coisas. Daquelas que se você estiver tomando café expresso no copo americano e disser que toma uma caracu ela acredita, e ainda corrobora com a versão estúpida dizendo que a fumaça do copo é do tanto que a cerveja está gelada e que a espuminha marrom na parede do copo é o resíduo da bebida. Mas, claro, ninguém toma expresso no copo americano, apenas em xicrinhas de porcelana chinesa compradas no contrabando. Teoria da conspiração, você anda pensando em muita merda.

Carlão sentira amor por aquela reação tão corajosa e estúpida, sobretudo por ser feita num contexto em que todos conhecem o camarada, bem como sua postura sobre as coisas. Arriscar-se dessa forma, mesmo que fazendo papel de imbecil, mas com ninguém tendo a pertinácia de questioná-lo, é muito ousada, é a prova cabal do medo coletivo de romper com as estruturas gregárias de pensamento e, por isso mesmo, usar-se delas e atacar a todos, indigna as pessoas e ao mesmo tempo não tem contra-resposta alguma porque as mesmas borram as calças quando alguém cutuca a cordinha de náilon esticada em palitos de sorvete construídas para mantermos relacionamentos “saudáveis” para uns com os outros.

As caixas de som berravam no vácuo do silêncio feito na sala com a reação de Martinha. Ninguém sabia como manter a estrutura das coisas, queriam apenas persistir no fato de que ele era um galinha fela da puta e que a mina o adorava e, por isso mesmo, o melhor era tudo permanecer. Carlão achara aquilo tudo lindo, sobretudo pela pomposidade com a qual Eros mantinha aquilo aparentemente há eras. Levantou-se sem hesitar, meio que sem saber o que falar e iniciou uma longa palestra, justificada pela incrível cagada histórica dele ter manuseado o celular do puto minutos antes, telefonezinho cheio de aparatos modernosos e inúteis que faziam o aparelho custar milhares de reais, como toques sensíveis no display, cumprimentos em viva-voz por oito idiomas com vozes e sonoridades que seriam típicas de cada região onde se falam essas línguas estúpidas, elaboração de memorandos com cabeçalho adequado para inserção do órgão ou empresa que assina tal documento e outros maneirismos incrivelmente fascinantes por tamanha futilidade e capacidade de obsolescência das coisas.

Para se ter uma idéia da exclusividade de ter um aparelho desses, é preciso enviar uma carta para a Índia contendo uma resenha de algum livro de Samuel Beckett, uma resposta convincente sobre quais as possibilidades reais de transubstanciação da matéria e os porquês poéticos (que fique claro, nada de linguagem médica) de Mussum ter morrido com o coração inchado se o camarada era um grande babaca fora de seus esquetes sensacionalmente brandos dentro de tamanho preconceito racial protagonizado por um indivíduo que poderia se munir da presença oprimida para fortalecer uma luta contra preconceitos de classe, cor e local de nascimento. Eros era um iluminado e este nem era seu nome real, apenas a resposta da carta que sugeria que ele comprasse o modelo RX-4052 e adotasse um nome menos imbecil que Roberval, que poderia queimar o filme da empresa por ter um cliente com nome tão imbecil e que o faria pegar mais mulheres. Deu certo. Ao contar da carta pra Índia (fora de contexto, que fique claro), numa mesa de bar com cerveja a R$4,50, Martinha, uma admiradora do espiritualismo e decência indianos, apaixonou-se profundamente pelo homem de nome tão charmoso e exótico.

Carlão advogou em nome de alma tão bondosa que permitia que qualquer boçal manuseasse seu celular iluminado correndo riscos de ações grosseiras como essa, assumiu sua mea culpa, mea máxima culpa e sofreu as represálias necessárias por parte de todos ao dizer que estava solto, solteiro, do Rio de Janeiro e que queria comer uma mina gostosa e que achara o nome da doida um nome de mulher gostosa. Se perguntassem a ele qual era o nome da doida, ele não saberia responder. Mas era essa a resposta que todos precisavam para evitar as trabalhosas represálias ao camarada que traria problemas maiores se ficasse longe de Martinha, já que esta encheria o penico dos outros com merdas infindáveis, lamentando-se de toda a ingratidão dele, a burrice dela, mas que continuaria a trepar com o camarada e choraria mais ainda nos ouvidos alheios.

Foi com alívio que todos censuraram a postura infame e infantil de Carlão, nunca mais convidando este maníaco para qualquer evento regado a cocaína, depois maconha, depois mais cocaína para recuperar o efeito desperdiçado pela erva, e mais maconha para recuperar o efeito desperdiçado pelo pó, etc, etc. Carlão caiu no ostracismo por essa galera, o que, apesar de não ter tido qualquer sensação aparente por parte dele, era uma tranqüilidade homérica por privá-lo de conviver com gente tão preocupada em manter uma falsa coesão de galera. Tirando o fato de ter levado um cd louquíssimo de Serge Gainsbourg que depois todos, sem exceção, tiraram onda dizendo para algum terceiro que conheciam há muito tempo, ele não propiciara nada para eles e, tirando o pó de primeira, nada mais propiciaram para ele. Parecia uma relação muito justa de dádivas que se encerravam naquele muquifo vagabundo onde Valéria morava. Mas para Eros não fora apenas um cd que ele pôde mixar depois e comer algumas minas dizendo que conhecia a parte mais refinada da música mais underground francesa (beleza, Serge Gainsbourg era exatamente a imagem disso, um adolescente vestido de punk e moicano, citando Cioran e pregando toda a alternatividade que há no mundo).

Eros era um picareta com traços badernistas que decidira certa vez cagar num pote e usar este para pintar uma tela prum concurso de desenho sobre a antiga Israel, ganhara o tal concurso e muito prestígio entre a criteriosa categoria de aristocratas envolvidos com arte na cosmopolita Brasília. Sem ter quem aceitasse cuidar de sua exposição de arte numa galera de caráter duvidoso, lembrara do primo quebrado de Valéria que vivia desempregado e de casa em casa de amigos “temporariamente, até chegar a vez na classificação para o concurso de motorista de metrô”. Pena que cidade alguma no mundo chamaria o ducentésimo quadragésimo oitavo colocado no concurso municipal para motorista de metrô ou qualquer outra coisa do tipo. A não ser que Carlão matasse pelo menos uns 240 concorrentes que se encontravam em melhor colocação que ele, a decisão mais acertada era procurar algo pra fazer da vida.

Sentira empatia por Carlão, mas apenas isso. Como ele não era muito dado com Valéria, que prometera certa vez contar para Martinha que ele estava dando em cima dela e que sabia de outros milhões de podres para serem revelados por ela para a amiga, Eros sentira que seria inadequado manter contatos por essa sem algum intermediário. Pedira para a namorada conseguir o contato do maluco e ela mesma fazer o convite pedindo que Carlão ligasse para ele se tivesse interesse. Na verdade, Eros estava com o telefone cortado há muitos meses, não poderia fazer a ligação, e Martinha podia ligar do emprego dela, sem contar que a impressão que ele tinha é que passaria a sensação de um homem muito ocupado para tratar de assuntos menores constituintes de parte de sua arte. Tratava sempre de passar a impressão que a única parte que lhe cabia desse processo era o suposto ímpeto criativo.

Carlão tomava uma garrafa de vinho ligeiramente avinagrado que estava largado numa prateleira de casa, de alguma festa na casa dalgum desconhecido. O chão da casa estava completamente imundo e ele havia pisado numa poça d’água que se acumulara no banheiro com algum entupimento obscuro que alternava um processo de cura mágico com inundações periódicas do piso de casa. Seus pés exerciam uma dupla função peculiar naquele dia, espalhando um barro negro pela casa por conta dos pés imundos e criava uma grossa crosta de poeira, uma areia meio grossa que parecia ficar cravejada na sola dos pés. Acordara com uma bruta ressaca e a última coisa que queria pensar era em como evitar o mar de imundície que ele próprio provocava em casa, enquanto se arrastava com a cabeça mais pesada que o próprio corpo e uma dor lancinante pelas pernas e braços que não fazia idéia de como surgira.

Sempre que bebia demais ao ponto de ter amnésias alcoólicas de longas horas numa noite, era certeza que acordaria cheio de dores no corpo. Tinha o estranho hábito de tropeçar, escorregar e enterrar a cara no chão enquanto caía após esses deslizes. O corpo amanhecia cheio de hematomas que eram descobertos sem ele mesmo saber o que provocou essas manifestações. Costuma beber e adquirir a leveza de um bailarino ou ginasta, que o induz ao erro com muito mais facilidade e muitas vezes o que o salva é a mão de deus ou algo invisível que o segura, quem sabe, pela cabeça, e evita danos maiores para ele e os outros ao redor. Subir em mesas, cordas bambas, dirigir, manusear pérfuro-cortantes, segurar crianças de colo, abrir e fechar portas com leveza e suavidade eram fatos que ele sempre exaltava conseguir fazer bem quando está bêbado e que, curiosamente, de fato, sempre conseguia realizar sem qualquer problema, mesmo que causando alguma comoção de quem estava ao redor e isso provocar-lhe certo vaidosismo pois sabia que não erraria.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Dedos

Corro os dedos pela barra da toalha de mesa, os mesmo dedos que percorreram seu braço enquanto conversávamos. De movimento imperceptível, como pluma riscada sobre uma superfície muito sensível, fluía de mim um desejo de leve estimulação. Infelizmente, quanto mais olhávamos um para o outro, menos eu me interessava. E tudo o que saía de sua boca destruía pequenas expectativas cotidianas, devaneios pungentes que de antemão sei que são delírios, no fundo. Se corro esses mesmos dedos que percorreram a toalha de mesa agora no copo de conhaque e me distancio de todos, e saio dessa ilha que é essa mesa cheia de gente e olho para cima como se fosse observado de lá do alto e tento escapar daqui, é porque o fascínio já se foi. E novamente o fascínio escapa pelos dedos desgrenhados e desesperados por agarrar cores, cheiros, sabores. E mais uma vez sobra-me o mesmo roteiro perdido e empoeirado que, decorado eras atrás, já não serve para o propósito de perpetuar uma postura, um modus operandi, uma moral sobre os acontecimentos e detalhes que deles emanam. Deixou de ser lenda, mito, carta de intenções, é horror real, jogo de cartas marcadas. E mais uma vez sentado, e mais uma vez ébrio, e mais uma vez você. Qualquer você, qualquer um, quelque un, formas nocivas de convivência gregária e pré-conservada sem fórmulas escritas, como a receita da titia. Aquela mesma delícia o resto da vida. Que delícia, conhaque, café, cigarro, charuto, pessoas, música, mendigos, garçons, aves, quiromantes, céus, frios, calores, humores. Lindo, lindo demais. Bolos, paçocas, pães-de-queijo, manés-pelados, bombons, biscoitinhos de nata. Delícias secretas que ficam em suspenso, à espera daquele que segure a galinha pelo pescoço, a nau de Colombo que fora encontrada por sereias e monstros míticos e supostamente uma falta de criatividade indígena incapaz de perceber a mesma nau mágica chegando, alertada apenas pelo distinto que pode enxergar além da besta e alienante realidade. Superioridade no sectarismo, talvez mesmo no proselitismo exacerbado em busca de conforto ante à destruição da expectativa de pactos seminais e libidinosos.

Corro os dedos pelo isqueiro, o abandono já está completo, nem a sensação de estar presente existe entre os convivas, invisibilidade social momentânea, flutuar discreto e cavalgar por outras sutilezas, o desenho do rótulo, a tatuagem nas costas, o nó na gravata, a cor do tênis, o detalhe no brinco, a forma da árvore, passatempos ligeiros de desligar da mente e boicote à desagradável obrigação de conjunção de abismos, de corpos que se espatifam no chão feito balão cheio d’água. Acendo o cigarro, fumaça prateada, densa, enevoada e espessa cobrindo, encobrindo minha displicência fingida do lugar. Dedos nos copos, digitais timidamente dilacerando qualquer álibi, registro inconteste de sua própria culpa e responsabilidade, ficha criminal puxada e analisada. Retorno à mesa, o eterno retorno. Chuvas de palavras, explosões de entonações, silêncio abismal. A fita acabou, a agulha risca o papelão do vinil e todos se silenciam, aguardando a velha boa-nova ou pensando na merda mais adequada para escapar à outra rodada de encare ao vazio que toma conta implicitamente da situação. Olham-se uns aos outros, conferem seus copos e garrafas. Trago longo, boca nervosa, asco e tontura lancinante. A cabeça retorna de sua inclinação agora alterada, visivelmente anestesiada, mas chocalizada, fogem os formatos cotidianos. E os olhares trocam o sorriso de assentimento, vago, escandalizado, a não-aceitação por completo. Flui vapor quente da tua boca, que bate na minha cara feito gelo. E já não sei se congelado pelo meu frio por ti ou se pelo seu frio, trocas térmicas muito confusas e inconclusivas. Medos íntimos de incapacidade de compreensão de outras formas de existência, ou de inexistência. Vai saber.

Tudo dura um minuto. Um minuto que vivenciado esperando-se cada segundo dura uma eternidade, eternidade intocável, inescapável como tocar copos, peles, cabelos. Explosões de hormônios, rearranjos internos de açúcares, proteínas e outros que restabelecem a cabeça em outra ordem, nova esperança, novos percursos e novos tempos. Corpo emerge do fundo da cadeira e dele brilham os olhos, as narinas e os narizes-matizes-tatos. Cordas enlaçam a tudo e mesmo sem se ver na obrigação de desvencilho, sabe-se daquilo que prende. E a corda da liberdade bem firme ao pescoço estica-se com o corpo pendendo abaixo e novas investidas suicidas são dispostas como dados correndo no carpete verde duma mesa de apostas, fugindo o tempo, a dignidade e qualquer compreensão de um eu que perdura no tempo, que existiu antes da mesa e que bem possivelmente existirá a seguir, absurdo colossal essa segurança e essa introdução na lógica das coisas lógicas, óbvias completas e sem medos. O dedo erguido, o dosador vertendo lágrimas cor de caramelo, o copo novamente resituado numa posição de afogamento íntimo e de ressaca moral, viagem pelos canos, ápice da transubstanciação do ser alcoolizado, poluído, impuro, nocivo à mesa tão bem posicionada com toalha, pessoas, cadeiras, cardápios, comidas, bebidas e palavras. Tudo bem disposto, harmonizado, desfile militar de palavras jogadas ao vento como papel picado, recepção e honras aos vitoriosos.

E enquanto os dedos se foram, fica o escandaloso corpo estribuchado, pendurado por uma corda, enojando e massacrando presenças tão ilustres e distintas, que nada fizeram para que tal efeito dominó viesse dar nessa escatologia barata e perversa donde fluem espasmos de auto-boicote, auto-destruição e desejo por carinho, afago que desperte para outra configuração de elementos, a incomunicação é completa ao ponto de fugir a lembrança, ficarem resíduos desmontados, desencaixados sobre os fatos, fatos que jamais existiram, sensação de coma induzido para amenizar a insuportável anestesia das coisas tomadas pela onda, pelo vento, pela bactéria, pelo vírus. Tudo transparente, invisível, como os mesmos argumentos de incompreensão à tamanha bravata desnecessária. Tudo fica vulnerável e a cada ataque fico tão vulnerável quanto. Mas tudo tende à destruição, os livros caindo das estantes, os carros pegando fogo, as árvores tombando pesadamente ao chão. E do chão, do chão, do chão, a volta é dura, é penosa, sensação de mutilação do corpo, da mente, da alma pobre e tosca que acaba de ser revelada a partir da fuga da etiqueta, da pompa e circunstância, das danças de salão e das filas de supermercado.