sábado, 10 de maio de 2008

Da colônia penal

Era verossímil abandonar aquele lugar, onde não voltaria a dormir ali e que, seguramente, nunca mais veria aqueles zeladores, aqueles carros, aqueles prédios. Novamente, tudo ficava para trás. Menos mal. Dado o andar da carruagem, aquela era a menor e menos penosa das despedidas, seguramente. Acendeu um cigarro e caminhou com a mochila nas costas, pensando em Teresa se despedindo dele com uma indiferença dominical, nada parecia ter a proporção que justificara sua estada inicial por aquelas bandas.

Toda a movimentação ocorrida nos segundos que se desenrolaram após seu anúncio de que partiria, passava a impressão de que ele iria fazer uma ligação no orelhão do outro lado da rua e que não levaria a chave. Ao fim e ao cabo, era como se ele, de fato, estivesse saindo para fazer uma ligação no orelhão ou comprar cigarros e nunca mais voltaria. Simplesmente nada no mundo parecia sentir aquele desencadear de ações, essa seria, afinal, a diferença para a forma do partir, era acordado que não haveria qualquer espécie de retorno.

E pensar que no exato dia em que partira, duas semanas antes dali, recebera uma ligação à meia-noite, vento seco e frio soprando no posto de gasolina deserto, apenas a voz apaixonada dela. Saudades, desejo libidinoso, carícias sopradas ao pé do ouvido, via celular, mais de mil quilômetros de distância e um arrepio intenso percorrendo o corpo de Lobão. O desejo era muito mais pela distância que por qualquer outra coisa. O distanciamento inevitável e óbvio era o clímax da relação. A possibilidade de visitar e revisitar a memória, costurar das formas mais variadas possíveis a lembrança tornava para cada um suas solidões menos penosas e amenizavam quaisquer de seus problemas cotidianos.

Lobão tinha plena certeza do risco que corria de encontrar a pessoa, digamos, real, que povoava seus sonhos. O choque de encontrar não ele mesmo e seus desvarios elaborados na distância e na fertilidade das idéias era-lhe inevitável e causava-lhe muito temor. Desconhecia Teresa. Não fazia a menor idéia de quem ela era de fato. Tinha a comodidade anterior de que, em breve, receberia sua visita em casa. Agora, ela, situada coincidentemente no meio de seu destino, de sua viagem, era uma grande incógnita, para não dizer terror.

Cada vez que pensava nela, perdurava o horror da certeza de estar sonhando com coisas que ele optou por lembrar, inventar e criar como sendo ela. Na fuga do brilho eterno de uma mente sem lembranças, não sabia como interpretá-la e como encontrá-la. Dentro do caminhão, quando pensava nela, cheio de desejo e tesão, tentava propor para si mesmo que talvez o melhor fosse não encontrá-la e, simplesmente, mantê-la um sonho cálido e delicioso em sua memória. Evitaria o transtorno do encontro concreto de mundos, gostos e caprichos com os quais jamais fora posto a conviver. Mas a paixão era maior. Muito maior.

Acabou por inseri-la no objetivo de sua partida, quando decidiu arriscar-se a evitar mais uma carona, aguardar mais quatro, cinco dias, em São Paulo, nas histórias que inventava para os caminhoneiros com o desejo de deixar para trás o Lobão que fora e a história que tivera. Agora, não tinha estudo, mal tinha família, não tinha dinheiro, perdera tudo e estava grávido de um sonho. Esse parto não aconteceria na estrada, tinha lugar marcado e não importava o dia e a hora, o tempo que fosse demorar. Agora, era tudo uma nova história sendo escrita.

Teresa passara os três últimos dias fora, o que vinha impedindo a partida de Lobão e tornando, para este, mais forçosa a sua saída. Teresa não suportava mais a presença dele em sua casa. Tinha dias que sequer trocava palavras após as investidas de Lobão por alguma conversa. Ela acordava, fumava um baseado em silêncio enquanto preparava seu desjejum, saía para sua aula, retornava no final da tarde, acendia outro baseado que religiosamente fumava na sala fingindo alguma naturalidade e indiferença em frente ao computador ou à televisão, comia alguma coisa, entrava para o quarto e dormia.

Lobão costumava preparar alguma refeição para a noite, que ela fazia questão de tocar somente no dia seguinte, e o resto do dia ou passava procurando emprego ou sentado na sala, como um típico desempregado, aguardando alguma ligação salvadora para uma entrevista nalgum lugar. Desde que Teresa passou a evitá-lo, tomou o colchão que estava na sala como seu e restringia seu raio de ação dentro da casa para o âmbito compreendido entre as minúsculas sala, cozinha e banheiro.

Sentia uma solidão intensa e profunda quando não descia para o centro da cidade, encurralado num prédio gradeado, dentro de um condomínio cercado, num bairro visivelmente elitizado, distante de tudo e temeroso do mundo real. Tomava uns dez banhos de sol diários, quando precisava se deslocar até a sacada de 1,0X0,50m para fumar. Fechava a porta de vidro tapada com uma colcha que dava para dentro do apartamento, agachava-se ou buscava de dentro uma cadeira de plástico, trazia para perto de si uma latinha de cerveja que improvisara como cinzeiro e fumava em completo silêncio.

Ali, restava observar a vista restrita e abafada por outro prédio rigorosamente idêntico ao que morava, posicionado de forma a bloquear a paisagem. Sobrava-lhe observar este ou os fundos de um colégio público rigorosamente cuidado e limpo para os filhos dos funcionários que trabalham nas redondezas. Ficava como que expulso daquele mundo onde estava, flutuando numa bolha de concreto e grades de alumínio, dividindo o pequeno espaço com um secador de roupas e alheio daquilo, como que numa bolha anti-nuclear ou qualquer coisa do tipo.

Sempre sorvia o cigarro sendo capaz de escutar este queimar em alto e bom som, mas nunca ouvia ruído algum de Teresa. Sentia-se um imenso estorvo para ela, mas era-lhe impossível, naquela altura do campeonato, esnobar aquela permissividade incomodada de Teresa para procurar outro canto onde esperar algum emprego aparecer. Seu dinheiro, já muito parco, minguava aceleradamente. Os movimentos eram cada vez mais cuidadosos e manter-se imóvel era a decisão mais sábia para prolongar a chance que ele dava à sorte.

Desejava a languidez e a serenidade de uma estátua ou de um daqueles loucos que param todo o restante de suas vidas e meditam até a morte apenas em uma posição. Desejava mais a estátua não como presença imóvel e sem desejos, mas para evitar o embaraço e desagrado que sua presença causava. Queria, também, a brecha de poder se movimentar nalgum momento, mesmo que apenas o diafragma. O cigarro, os passos, os bocejos, se tornavam tão pesados e escandalosos que para ele era insuportável prosseguir naquela casa enquanto existência e convivência.

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