sábado, 17 de maio de 2008

Lampejos

Eis a onda do momento. Agora, não me resta tempo para nada no mundo. A completa imersão e transbordamento das coisas. Tirando as horas de sono, que não são apenas sono, mas desmaio ante o mundo, tenho um vácuo de 48h semanais dispensadas para um McDonald's destinado apenas à classe A ou para os B que são incapazes de pagar sequer o serviço. Entrei na vida de merda da cidade grande, engolido pela fuligem, fumaça, escapamento de motor, cigarros tragados pelo digital na Lauro Sodré que calculam cada segundo dispensado dos quinze minutos restantes para retornar ao serviço, ébrio de sono, fraco, débil e cansado. Lá se foi o matiz de vivacidade, de alegria e compenetração poética. Vampirizado pelo mundo. O pedaço de carne que vive nalguns metros quadrados, circulando a esmo sem parar, aguardando a hora de partir.

Vive-se imerso na completa perdição mental e afetiva. Foi-se toda a reflexão. O negócio agora é apostar, e alto, no desespero dos dias. Eis o desafio indecifrável. Quando do tempo inteiro, completo e tedioso, o desgosto. Agora, a precisa percepção de que a guilhotina está ali, afiada, sedenta, inteira, atrás de cada canto teu, capaz de decepar ao meio um fio em todo seu comprimento. É a luz fluorescente, é a hipnose sem fim. Estar jogado na própria sorte, ver-se completo na necessidade de inteirar tudo o que lhe falta sem ninguém por perto. E ver-se ontologicamente na sina de algo sem volta. Destruição perene. Das carnes, dos sonhos, dos passos, das solas de sapato. Acabado, frangalhos de noites sem fim. De noites angustiantes das 18h até as 2h. You lose.

O confronto deliberadamente proposto, de cruzar os próprios sonhos vividos comodamente vezenquando com a dura e crua noção cotidiana de acordar, comer, viver, pegar sempre a mesma linha, ver sempre os mesmos prédios, chegar sempre no mesmo lugar e seguir sempre, irredutível, impassível, fazendo crer os próprios enganos, os próprios erros. Não são quaisquer besteiras. São os erros tomados para uma vida inteira. Quando decidimos que vamos correr o risco de errar, vemos que não tem o menor problema, apesar da certeza de que sempre poderemos escapolir, fugir disso tudo e esquecer que houve erro. Pois é. E nessa roda viva, o que importa é esse lirismo calhorda e cínico. Fortalece, seguramente. Porque não é apenas lirismo calhorda e cínico. É paixão, é desprendimento, desterritorialização e etcaetera e tal. Emerge uma leveza que é incrivelmente poliforme.

As coisas se reconformam, tomam novo sabor, como vinho em barrica velha. Porra de sabor abaunilhado, de epicentro babacóide e perfeccionista com o próprio tempo...Impossível ficar sereno com isso tudo sem terapeuta, sem recursos desmoralizadores. O lance mesmo é jogar tudo pro alto, pra fora. Quem se arriscar a pegar, pega. E nisso tudo, uma pureza, uma vivacidade que não tem nada no mundo que é capaz de suprir. Convivo com o completo desejo realizado, sim, e a completa paumolescência da dura realidade das coisas. Fascinante. Encantador. Viajo pelo tempo, colapsado, pulsante, errante, apaixonado. Lindo, lindo, lindo. Em tudo que está errado, sobretudo nas escolhas medonhas e pouco recomendáveis, vejo que o desgaste e a terra seca ainda são-me mais importantes que a porra toda que podia ter rolado.

Seria tão incrível, e por isso penso agora nisso, ter pensado ou imaginado nos porquês de ter feito tudo isso. Turbilhão. Caralho, vivam os turbilhões. Os desarranjos, as conversas tortas, as passagens mal pagas, os descaminhos. Tchau vias de quatro faixas, planos cartesianos. Seríamos incapazes de permanecer unidos. Não podia com nada. Não posso. Alergia. Quem sabe não faço tudo novamente, para outro lado? Agora, que é real, que é possível...Jogar-me por aí, ignorar medos, temores, inseguranças. Ou usá-las exatamente para isso. É incrível a vetorialidade do mundo. Múltipla, incerta, imprecisa. A cabeça flutua, voa para longe, perdida. Arrependo-me, em parte, como em qualquer metade, de ter largado as coisas mais seguras do mundo. Era tudo muito seguro.

É possível dimensionar o problema disso tudo. Era tão seguro, mas tão seguro! Tanto que ainda sigo com essa mesma segurança. Senão não sairia. E ao invés de travellings without movings, heads with wings, and etc, fui me jogar no esgoto, no abismo, no pântano de um subemprego, de uma sub ciudad, megalópole confusa e descompassada. Refez meu passado, minhas lembranças. Os fios de Ariadne tornam-me inversos. Parece que agora busco voltar ao centro do labirinto. Pelo conforto da memória, pela lembrança cálida e candente. Lá se foram os borrões, os espasmos a doença louca que me consumia. Não me lembro de nada, inquieto e inseguro. Paisagem brutal que segue em mim, agora me trazendo segurança, exatamente por ter gastado, consumido tudo. Sabor doce de ilusão. Ai, paisagens doces.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Amor de Carnaval

Amor porteño (gotan project)

Una inquietante mirada de amor porteño
Cálida y cruel
No, no puedo creer que pasó
Que el misterio sensuel de tu risa canyengue
Se apagó

Brindo por esa ilusión de amor porteño
Loco puñal
Dulce y fatal, la nostalgia
De un tiempo pedazo de
Nosotros dos

Y yo que pensaba que no me importaba
Que una caricia podía borrar el color
De mi ciudad ...

El código oculto de esa mirada
Es como una señal
Y no puedo zafar
Un deseo sutil que temblando me viene a buscar

febre

Perdura uma fúria, um desejo intensamente destruidor que corrói minhas entranhas, me faz vestir a capa negra, os caninos se esticarem e sair uivando pela noite. Uivante. Sedento, febril. E da explosão de desencantos, do romper das comportas, do transbordamento delirante, a tentativa anêmica, de trajes rotos, em busca duma gota, concentrada, que refaça a esperança. O desejo de que os fluídos tomem conta novamente de cada artéria, veia, que salve os espaços dantes cheios de tráfego e agora mornos, vagos, remotos para a semeadura do porvir. Falta a vontade de poder. E nada mais.

Foi-se o tempo das grandes colheitas, das terras férteis e irrigadas por gotas gordas d’água que permeavam sonhos apaixonados. Resta, apenas e tão somente, o desejo do resgate daquilo que é atemporal, que pode estar se executando nesse exato momento. Seria incrível ser possível reaver o anima, o plasma das paixões, magma incandescente e ativo. As energias baixaram, as trocas afrouxaram-se, sobrando apenas as migalhas e trapos doutros carnavais. Se a espera se mantiver dolorosa, talvez seja apenas a confirmação óbvia dessa necessidade de transformação completa.

sábado, 10 de maio de 2008

Do após-calipso interno

O sol brilhava a pino, sous le soleil exactement, fazendo todas as cores reluzirem intensas, vívidas. Sol tropical, forte, caudaloso. Derretendo corpos, árvores, cidades inteiras. Nada continha a fúria do sol que a tudo destruía. Cachorros quase desmaiados nos cantos das casas, sofrendo até para respirar. Um vento seco soprava e secava o sal que emanava do corpo. Lá se foi o banho, lá se foi o frescor das idéias. O calor castigava, junto com o brilho do sol. E da altitude de Sobradinho, ao longe, no final do horizonte, nuvens densas, carregadas, pesadas e cheias d’água se preparavam para cair num canto qualquer de Brasília. Não me importava. Sequer sentia a possibilidade de chuva naquele instante, não era capaz de pensar nisso enquanto derretia inteiro.

Fui pro ponto de ônibus, pensando nos trinta reais que tinha na carteira, pensando na hora errada que decidi tomar tal decisão. Podia esperar um começo de mês, podia esperar a melhor ocasião, podia esperar tudo. E assim, novamente, protelaria tudo que consumia a minha mente, meu corpo, meu cotidiano. Já não tinha mais como preparar, como esperar o trem. Assim pensando o tempo passa, e a gente vai ficando pra trás. Não sabia ao certo onde poderia dar tudo isso, se realmente sairia do lugar. Vidas secas, sol escaldante, o caminho de terra e cascalho no meio do gramado mal-cuidado. Cada passo saía errante, sem saber ao certo. De alguma forma, começava a jogar fora alguns mapas mentais, raios de ação.

Ter saído daquela casa, daquele quarto fedendo a cigarro e a cerveja choca levou-me à saturação visual completa. As cores não cabiam em mim. Todos me ignoraram e ignorei a todos. Um silêncio medonho e uma indiferença carregavam o ar quando da minha presença. Não sabia ao certo o que fazer antes de pôr os pés na rua. Tinha juntado umas mudas de roupa na noite anterior, após um incidente numa festa. Estava tudo amassado dentro da mochila. Preparei o que restava, sobretudo de mim mesmo, mas me esqueci de um bocado de coisas. Phoda-se. Mal conseguia pensar. Estava consumido pelo mundo. E tudo permanecia imóvel, ficado na terra, estagnado. Os aromas pesavam sobre o ambiente, minhas coisas, aquele céu que me testemunhou a vida toda.

A primeira necessidade era sair do DF. Desceria para a rodoviária do plano piloto e de lá partiria para Valparaíso. Guardei três maços de cigarros na mochila, fechei esta e fui para o ponto esperar a galera amarela. As poucas pessoas no ponto brilhavam radiantes, milhares de cores quentes, a parada amarela, a grama verde reluzindo, o céu de azul infinito, camisas vermelhas, laranjas, fogo intenso. Perdia-me naquilo tudo, parecia-me tudo demais. O transporte se aproximou, singrando o asfalto prateado que se derretia nos pneus como lâmina cortante. O asfalto oscilava, parecia que estourariam bolhas daquela incandescência. Dentro, o piso laminado e luminoso dava dores de cabeça, o cheiro de óleo diesel me consumindo, o barulho ensurdecedor do motor comendo minha audição.

O ônibus rodava lento, tentando escapar da areia movediça, sacolejante, com urros cansados do motor, como animal abatido, resfolegante. Era possível sentir os suspiros de vencido que o ônibus gritava. Como estávamos a uma parada do ponto final, este se encontrava completamente vazio. E já um tanto derrotado. No ponto seguinte, um homem adentra com uma blusa extremamente branca, gelo, e duas pipas quase psicodélicas pelos desenhos e pela explosão de cores. Era-me impossível pensar. Tudo me engolia. A mochila pesadíssima sobre meu colo parecia um peso de papel tentando me manter firme para não sair planando por aí, do vento louco que entrava pelas janelas recém-abertas. Sentia meu corpo gotejar, a água se formando na superfície da minha pele, e o vento a secar tudo.

Era uma fábrica de sal. Meus braços também brilhavam, minha carne cozinhava lentamente, no vapor daquele domingo, fritava naquele óleo fétido que borbulhava dentro do ônibus. Já estava minimamente temperado para a ocasião, restava-me uma maçã na boca, talvez. Passamos pela rodoviária de Sobradinho, por mais algumas paradas dentro da cidade, cada vez enchendo mais, mais gente subindo, mais calor se fazendo, o carro tentando se livrar das raízes que se formavam em suas rodas. Finalmente alcançamos a rodovia. Simplesmente a entrada nesta trouxe uma longa rajada de vento que levou consigo todo o calor. Tirando o sol impetuoso, a massa de calor havia desaparecido. E de fora, todo o abandono dominical tomando conta do mundo, favorecido pelas irradiações cruéis.

O Período Diluviano

Chuva, chuva, chuva. O caminho até Luziânia foi completamente encharcado e tedioso. Fizemos um longo caminho com pouca visibilidade. A chuva começou e todos, como de costume, fecharam completamente as janelas do ônibus. Uma densa colônia de bactérias devia estar se formando naquele momento, com pessoas tossindo, conversando alto, crianças chorando. Olhava pras pessoas e só sentia hálito quente emanando de seus corpos. Nos sonos, nos peidos, nos risos, no silêncio. Tudo vedado, mal dava para saber o que acontecia do lado de fora. Passava regularmente as costas da mão no vidro, mas rapidamente perdia a pouca visibilidade conseguida. As pessoas oscilavam de acordo com a extensão da viagem, que era longa. Muitos entraram e caíram rapidamente no sono. Poucos quilômetros depois estavam despertas e fazendo algo, seja escutando música, conversando, lendo algo. De tempos em tempos, entravam vendedores/as que perderam tudo, que portam alguma doença grave, que ajudam alguma instituição de caridade, alguém que podia estar roubando mas está lá vendendo aquelas balas, aqueles kits, aqueles adesivos. Parece um longo sistema de caronas e vendas donde tudo conflui perfeitamente para que nunca dois vendedores se encontrem. E enquanto isso, dezenas seguem seu itinerário. No meio do mar de chuva.

As águas engoliam as pistas, os pontos de ônibus, as canelas das pessoas. Era um dilúvio de verão, na terra de 14% de umidade relativa do ar na maior parte do ano. As janelas fechadas e completamente embaçadas tornavam impossível saber ao certo o que acontecia do lado de fora. Mas a impressão latente era de que a qualquer momento poderíamos ser tragados pelo mar que se fazia. Estava sentado na altura de uma das rodas e um imenso leque d’água chegava à minha altura. Tudo começara quando largamos o plano piloto. A partir daí, tornou-se impossível saber qual o caminho que o motorista fazia. Qual fosse o trajeto, seguramente muitas mudanças em cima da hora tiveram de ser feitas. Aquele jogo, digamos, “arrojado”, típico de motoristas de ônibus, de retornos em cima da hora, ultrapassagens completamente improváveis e níveis de velocidade impressionantes para um veículo carregado de gentes. O motorista seguia impassível, talvez porque a viagem é longa e ele teria de fazer de qualquer jeito. Então, acaba tocando o phoda-se. Os passageiros tampouco demonstravam algum interesse por aquele dilúvio. Parecia-me que para eles as coisas não soavam tão curiosas.

Casebres, barracos, cidadelas afundadas n’água, tudo contrastando com o clima da minha partida. Quanto mais nos afastávamos do plano piloto, mais intensa a chuva, mais pobre as casas, maior a penúria para as pessoas se locomoverem. Os canteiros centrais entre as duas vias das rodovias vomitavam para o asfalto uma água densa e barrenta, bem como o fazia também as laterais da pista. Enquanto isso esperava, como as dezenas que se empurravam nas paradas de ônibus de tamanho ínfimo. No entanto, não estava ensopado até os ossos, tinha comigo apenas o tédio da viagem. Dormi. Várias vezes vieram pequenos sonhos que se fundiram com o ambiente do ônibus. Acordava de estalo, sem fazer idéia de onde estava. Partia sem saber ao certo como faria para sair dali. Essa era a única certeza, a de sair dali. Aquela chuva esforçava-se para carregar de fertilidade aquela terra bravia e maldita. Esforço digno. Mas não mais para mim. Precisava cair fora. E urgente. A cidade me absorvia como terra árida sorvendo água. Meu tempo se esgotava, para mim mesmo.

Da varanda

Por cortesia, preciso fumar na varanda do apartamento, de aproximadamente 1m x 0,5m. Não há muito que se fazer. Mesmo porque mal dá para se movimentar. Na sacada, tem um pequeno varal no canto, restando apenas metade do espaço inicial. No começo, sentava-me desconfortavelmente apoiado no vidro que faz fronteira com a sala do apartamento, mas é assaz desafiador para quem perdeu o pouco que tinha de elasticidade nos últimos anos. Mesmo assim, demorei em traçar outra forma de fumar. Enquanto fazia um pequeno contorcionismo, observava os apartamentos de dois prédios que ficam à minha frente e seus jogos sincrônicos de luzes emanadas das televisões, quase todas no mesmo canal – Globo, creio eu. As noites são bem frescas por estas bandas, sobretudo na varanda. Nos últimos dias, chuvas leves encerraram meu expediente com aquele aroma de cimento molhado subindo até o apartamento.

De dia, é possível observar algum gato pingado jogando bola numa das quadras do condomínio ou escutar a gritaria das crianças no colégio, também dentro do condomínio e em frente à sacada. Ficar observando atrás de grades é algo deveras angustiante, sobretudo por me ver, em grande medida, ilhado. Aqui, no Recreio/Barra, são muito quilômetros longe de civilização. Viver aqui deve ser algo realmente penoso para a mente e o espírito, pois tudo é forçosamente elitista, apartado do mundo. Um misto de estátua da liberdade com arquitetura e urbanismo Miami-Plano-Piloto-Sudoeste-Goiânia. Não paro de pensar em Umberto Eco, na irrealidade do cotidiano. Avenidas largas, com aspecto de rodovia, que me lembram cidades americanas, um Road-movie estilo Paris-Texas ou Little Miss Sunshine. E por todos os cantos ruas gringas, shoppings por todos os lados, prédios que basta mirá-los para saber que cada apartamento custa milhões de reais. Talvez tenha me caído perfeito isso aqui, como uma transição. Ainda me sinto em Brasília quando estou nessa região.

O impacto da cidade não me vem tão grande, porque sinto-me em Metrópolis do Fritz Lang, faltando mesmo só aquela trilha sonora chatíssima. Chegar de noite, de ônibus, aqui, é ver os milhares de pobres que saem de dentro dos shoppings, das casas, dos uniformes, dos baldes e vassouras, dos sorrisos mecânicos, para alguma favela da região. Muita Brasília na veia. O tempo corre e já sei que em breve estarei fora daqui, só não sei para onde vou ainda. E de lotações com funk carioca na veia, de ônibus de direção arrojadíssima e caminhos sinuosos, vou pingando nos lugares, vou sentindo a cidade, vou sendo compreendido por ela e vice-versa. Eu e o tempo acertaremos nossos ponteiros. A grana vai se esvaindo, agonizante, escapando dos dedos, nas passagens, nos metrôs, nos sanduíches vagabundos de dois reais. E em toda parte vejo gente, mulheres, homens, mulheres deliciosas, velhos fumantes inveterados.

Os velhos e velhas fumantes são fascinantes. Pela forma como seguram seus cigarros, como andam, como os acende, sua senilidade exposta no hábito de fumar. Nos pontos de ônibus, nos bares imundos, nas calçadas já gastas por milhões de pés e sonhos investidos nessa cidade. Incrível como as pessoas andam. E mesmo assim parece haver um pavor de andanças muito longas. Pedir informação sobre algum lugar um pouco mais distante para ser feito a pé é o suficiente para te forçarem a pegar um ônibus. É tudo muito longe, supostamente. Mal conhecem a nouvelle capital. Mal sabem a necessidade de perseverar na economia. Mas não há discussão.

Decidi por levar uma cadeira para a varanda e testar sua ergonomia dentro de tão pouco espaço. Finalmente fumei decentemente, os pensamentos saíram melhores.

Da colônia penal

Era verossímil abandonar aquele lugar, onde não voltaria a dormir ali e que, seguramente, nunca mais veria aqueles zeladores, aqueles carros, aqueles prédios. Novamente, tudo ficava para trás. Menos mal. Dado o andar da carruagem, aquela era a menor e menos penosa das despedidas, seguramente. Acendeu um cigarro e caminhou com a mochila nas costas, pensando em Teresa se despedindo dele com uma indiferença dominical, nada parecia ter a proporção que justificara sua estada inicial por aquelas bandas.

Toda a movimentação ocorrida nos segundos que se desenrolaram após seu anúncio de que partiria, passava a impressão de que ele iria fazer uma ligação no orelhão do outro lado da rua e que não levaria a chave. Ao fim e ao cabo, era como se ele, de fato, estivesse saindo para fazer uma ligação no orelhão ou comprar cigarros e nunca mais voltaria. Simplesmente nada no mundo parecia sentir aquele desencadear de ações, essa seria, afinal, a diferença para a forma do partir, era acordado que não haveria qualquer espécie de retorno.

E pensar que no exato dia em que partira, duas semanas antes dali, recebera uma ligação à meia-noite, vento seco e frio soprando no posto de gasolina deserto, apenas a voz apaixonada dela. Saudades, desejo libidinoso, carícias sopradas ao pé do ouvido, via celular, mais de mil quilômetros de distância e um arrepio intenso percorrendo o corpo de Lobão. O desejo era muito mais pela distância que por qualquer outra coisa. O distanciamento inevitável e óbvio era o clímax da relação. A possibilidade de visitar e revisitar a memória, costurar das formas mais variadas possíveis a lembrança tornava para cada um suas solidões menos penosas e amenizavam quaisquer de seus problemas cotidianos.

Lobão tinha plena certeza do risco que corria de encontrar a pessoa, digamos, real, que povoava seus sonhos. O choque de encontrar não ele mesmo e seus desvarios elaborados na distância e na fertilidade das idéias era-lhe inevitável e causava-lhe muito temor. Desconhecia Teresa. Não fazia a menor idéia de quem ela era de fato. Tinha a comodidade anterior de que, em breve, receberia sua visita em casa. Agora, ela, situada coincidentemente no meio de seu destino, de sua viagem, era uma grande incógnita, para não dizer terror.

Cada vez que pensava nela, perdurava o horror da certeza de estar sonhando com coisas que ele optou por lembrar, inventar e criar como sendo ela. Na fuga do brilho eterno de uma mente sem lembranças, não sabia como interpretá-la e como encontrá-la. Dentro do caminhão, quando pensava nela, cheio de desejo e tesão, tentava propor para si mesmo que talvez o melhor fosse não encontrá-la e, simplesmente, mantê-la um sonho cálido e delicioso em sua memória. Evitaria o transtorno do encontro concreto de mundos, gostos e caprichos com os quais jamais fora posto a conviver. Mas a paixão era maior. Muito maior.

Acabou por inseri-la no objetivo de sua partida, quando decidiu arriscar-se a evitar mais uma carona, aguardar mais quatro, cinco dias, em São Paulo, nas histórias que inventava para os caminhoneiros com o desejo de deixar para trás o Lobão que fora e a história que tivera. Agora, não tinha estudo, mal tinha família, não tinha dinheiro, perdera tudo e estava grávido de um sonho. Esse parto não aconteceria na estrada, tinha lugar marcado e não importava o dia e a hora, o tempo que fosse demorar. Agora, era tudo uma nova história sendo escrita.

Teresa passara os três últimos dias fora, o que vinha impedindo a partida de Lobão e tornando, para este, mais forçosa a sua saída. Teresa não suportava mais a presença dele em sua casa. Tinha dias que sequer trocava palavras após as investidas de Lobão por alguma conversa. Ela acordava, fumava um baseado em silêncio enquanto preparava seu desjejum, saía para sua aula, retornava no final da tarde, acendia outro baseado que religiosamente fumava na sala fingindo alguma naturalidade e indiferença em frente ao computador ou à televisão, comia alguma coisa, entrava para o quarto e dormia.

Lobão costumava preparar alguma refeição para a noite, que ela fazia questão de tocar somente no dia seguinte, e o resto do dia ou passava procurando emprego ou sentado na sala, como um típico desempregado, aguardando alguma ligação salvadora para uma entrevista nalgum lugar. Desde que Teresa passou a evitá-lo, tomou o colchão que estava na sala como seu e restringia seu raio de ação dentro da casa para o âmbito compreendido entre as minúsculas sala, cozinha e banheiro.

Sentia uma solidão intensa e profunda quando não descia para o centro da cidade, encurralado num prédio gradeado, dentro de um condomínio cercado, num bairro visivelmente elitizado, distante de tudo e temeroso do mundo real. Tomava uns dez banhos de sol diários, quando precisava se deslocar até a sacada de 1,0X0,50m para fumar. Fechava a porta de vidro tapada com uma colcha que dava para dentro do apartamento, agachava-se ou buscava de dentro uma cadeira de plástico, trazia para perto de si uma latinha de cerveja que improvisara como cinzeiro e fumava em completo silêncio.

Ali, restava observar a vista restrita e abafada por outro prédio rigorosamente idêntico ao que morava, posicionado de forma a bloquear a paisagem. Sobrava-lhe observar este ou os fundos de um colégio público rigorosamente cuidado e limpo para os filhos dos funcionários que trabalham nas redondezas. Ficava como que expulso daquele mundo onde estava, flutuando numa bolha de concreto e grades de alumínio, dividindo o pequeno espaço com um secador de roupas e alheio daquilo, como que numa bolha anti-nuclear ou qualquer coisa do tipo.

Sempre sorvia o cigarro sendo capaz de escutar este queimar em alto e bom som, mas nunca ouvia ruído algum de Teresa. Sentia-se um imenso estorvo para ela, mas era-lhe impossível, naquela altura do campeonato, esnobar aquela permissividade incomodada de Teresa para procurar outro canto onde esperar algum emprego aparecer. Seu dinheiro, já muito parco, minguava aceleradamente. Os movimentos eram cada vez mais cuidadosos e manter-se imóvel era a decisão mais sábia para prolongar a chance que ele dava à sorte.

Desejava a languidez e a serenidade de uma estátua ou de um daqueles loucos que param todo o restante de suas vidas e meditam até a morte apenas em uma posição. Desejava mais a estátua não como presença imóvel e sem desejos, mas para evitar o embaraço e desagrado que sua presença causava. Queria, também, a brecha de poder se movimentar nalgum momento, mesmo que apenas o diafragma. O cigarro, os passos, os bocejos, se tornavam tão pesados e escandalosos que para ele era insuportável prosseguir naquela casa enquanto existência e convivência.