Os domingos costumeiramente raiavam por entre a minúscula janela do quarto do cortiço de forma inclemente. Talvez mais pelo telhado de zinco, a tosca armação em tnt para esconder as telhas e a necessidade de manter a janela fechada pelo inconveniente das baratas, domingos se iniciavam sempre de uma forma arrebatadora. O rádio do Salviano, bahiano-paulista morador do quarto fronteiriço, ligado toda a madrugada, seu rádio-relógio de Macabéa, sua paranóia bloqueando-o dentro do tugúrio, desperto, tentando escutar dos vizinhos qualquer referência ou citação à sua pessoa, era uma tormenta. Música xexelenta, dita popular brasileira, de rima pobre e neologismos baratíssimos. O rádio era seu amigo e algumas vezes até seu professor, ensinando-lhe de vida e pondo-o a par do mundo extra-muros do cortiço.
Despertava sempre com o colchão empapado de suor, precipitado pegajoso que emanava inevitavelmente o álcool do dia anterior, o zinco das telhas, a preguiça imensa de ver-se ante o último dia de repouso para iniciar nova jornada semanal. Era mais um domingo qualquer de muito sol, de Maracanã no final da tarde, de praias lotadas e do cortiço curando-se da ressaca religiosamente disparada pelos sábados de desesperadas bebedeiras. O sol brilhava irritante, os rádios do vizinhos começavam a tocar músicas medonhamente felizes de todos os lados, os pássaros cantavam. Tudo em verde, zinco e roupas úmidas no varal. Para a ressaca, fotofobia, termofobia, melofobia. Tudo vindo dos outros, é veneno.
Como de costume, o domingo começava com Lourival lavando a louça suntuosa e imunda de alguma patuscada da noite anterior. Lavava tudo soltando entre dentes trincados toda sorte de injúrias contra os gringos mimados e os bebuns moradores eternos do cortiço. Acostumado com a lida de acampamento, Lourival primeiro lavava toda a louça, deixava-a secando e, para amenizar o calor do dia e a sujeira largada na noite anterior por bebuns desastrados e cachorros de intestinos soltos por ração vagabunda, ele iniciava a limpeza do espaço comum dessa parte do cortiço.
Do meu quarto era possível escutar em detalhes cada movimento seu. Seja passando da pia, atravessando pelo varal cheio de roupas sujas esticadas para dissipar o fedor impregnado, seja entrando no banheiro, abrindo a porta da geladeira, acendendo um cigarro ou estalando os chinelos na escada até o andar de cima. Nossa região do cortiço é praticamente o subsolo, pensurado na ponta do morro, o último andar, em descenço, da entrada do cortiço. E Lourival conhece cada canto, cada história deste lugar como se o dominasse há eras. É possível sentir esse conhecimento dele em cada fio de bigode, em cada dente podre, na liberdade com que circula pelo ambiente... Eis que o velho homem sobe as escadas.
Saía em busca de alguma vassoura que sempre estava perdida pela casa e voltava sempre com alguma bem gasta e imprestável, reclamando do descuido geral com os utensílios de uso coletivo. Começava varrendo do alto da escada, juntava os restos de comida, as baratas mortas e os toletes grotescos que os cachorros largavam pelos cantos. Muitas vezes, no alto da madrugada, trôpegos, alguns se esqueciam dessas dádivas caninas. Pisavam sem querer, espalhavam a merda pelo recinto e por seus quartos. No dia seguinte, ressaqueados, destruídos, tinham de por todos os móveis para fora e lavar com água abundante todo o quarto, putos da vida, quando não o banheiro também.
Os dois cachorros, coitados, há anos comiam a mesma ração barata, inssossa e asquerosa que o dono do cortiço lhes servia. Vezenquando alguém corria o risco de dar algum resto de comida, o que rendia um dia inteiro de perseguição débil de ambos atrás do benfeitor em busca de mais comida de verdade. Comiam de tudo. Ovo, pão, queijo, cascas e restos de comida não aproveitados... qualquer coisa era melhor que aquela ração horrenda. O pior é que esta ração causava-lhes uma desinteria eterna que provocava uma merda gigantesca, brilhante, gordurosa e cremosa que, como manteiga no pão quente, se espalhava com facilidade pelo chão e só saía com muita água.
Lourival tinha de juntar estes toletes de merda, os restos de comida recusadas pelos cachorros, as baratas mutantes da lapa que recorriam ao cortiço como cemitério ritual e as guimbas de cigarros, vedar tudo em sacolas plásticas de mercado e dispensá-las na lixeira da rua, pela enorme quantidade de moscas e pequenos insetos voadores atraídos por estas iguarias. Voltava com irritação febril. Enchia baldes e baldes de água e começava longa esfregação, usando algum sabão em pó de qualidade duvidosa e preço promocional, para trazer a dignidade de volta àquela feliz zona do cortiço.
Talvez por ser o seu subsolo e limite, aquela região da vila também costumava agregar grande contingente de pessoas. Não vou me dar à infrutíferas analogias filosóficas, até mesmo pela própria metodologia de quem vou usar de exemplo, mas aquela zona, por tão limítrofe inclusive com o próprio bairro, quase caindo de Santa Teresa e parando nas esquinas fedendo a mijo da Lapa, pregado no morro, aquele puxadinho improvisado e minúsculo parecia aconchegante quase à bachelardiana. Velhos alcóolatras desempregados vinham pedir dinheiro emprestado a Lourival, não tão jovens rapazes vinham jogar xadrez, parte dos moradores dos outros andares vinha cozinhar ou guardar alimentos na geladeira coletiva...
Lourival terminava a limpeza com seu corpo senil reluzindo suor, um mal humor irreparável até o primeiro gole de cachaça. Tomava uma ducha, ligava seu rádio e, como bom mineiro apreciador de cachaça, tirava de algum esconderijo seu mini-pet de pinga, por seu atual contexto econômico e geográfico, Caninha da Roça, de cheiro inenarrável, vomitolento de antemão por pensamento. Cortava algumas rodelas de limão e, sem açúcar, iniciava seu ritual dominical de embriaguez e um possível bate-boca ao final do dia com algum dos indolentes que participara da patuscada na noite anterior e que largara toda a sua área imunda.
Começava a beber, sentado ao lado da mesa de ferro, dessas de botequim antes da explosão do plástico pós-Collor, e, à medida que se animava com a música e o álcool, desencadeava a feitura do almoço. Lourival prepara um carré divino que, muitas vezes, parece ficar melhor proporcionalmente ao grau de sua embriaguez. Tempera-o com esmero, enquanto bica sua cachacinha e deixa as tiras de carne descansando por entre especiarias escolhidas à dedo. Outra especialidade do Lourival é o feijão. Em noites de sábado que ninguém fica no cortiço e o pobre don não tem dinheiro, ele separa vasta sorte de carnes, deixa-as de molho para dessalgar, dorme bastante bêbado e acorda cedo, ainda embriagado pela noite anterior, para concluir sua alquimia.
É metódico, talvez como todo homem sozinho, com ritual apurado. Creio que se cozinhar sóbrio, sua comida sairá uma lavagem. Por seus métodos, acaba pagando o pato, e tendo de fazer toda a faxina dominical, já que todos ainda dormem, com a cabeça latejando e o quarto empesteado a álcool da noite anterior. Exceto o Salviano, que está virado, insone, ouvido pregado na porta, tentando escutar o que falam dele. Para o Salviano, os finais de semana são um completo e absoluto inferno pessoal. Sabendo que todos ficam em casa boa parte do tempo, vive um sentimento de desespero pela inevitabilidade de que todos estão conspirando para seu infortúnio.
Um bravo e solitário lobo contra uma multidão de gentios de modos boçais e sem a menor inclinação artística como a dele, Salviano fica paralisado, sente-se a minoria oprimida. Com a rigidez e concentração de um faquir, prostra-se dentro do quarto em absoluto silêncio, apenas o radinho ligado, numa meditação profunda buscando encontrar do lado de fora, na confusão de latidos, grunhidos e outros urros dos animais que circulam pelo cortiço, o seu nome, o retalho que possa ser costurado em sua sofisticada teoria de golpe que armam contra ele. Mija dentro de garrafas plásticas guardadas para estes dias, faz uma garrafa de café para não pregar os olhos e recolhe o máximo de mantimentos não perecíveis em sua cabana para a empreitada, como se fosse para a floresta.
Essa floresta, mental, terror psicológico, o toma de maneira arrebatada. Sua viagem xamanística pelos confins escuros de seu quarto imundo e sua mente paranóica o tomam de vertigem, fazendo às vezes o exercício insuportável. Desiste das meditações, sai do quarto a reclamar do barulho, falando barbaridades, escarrando no chão, como neste dia, em que cometeu a estúpida atitude de regar o telhado de zinco com água, ‘para amenizar o calor’ – criando goteiras nos quatro quartos, na zona de convivência e gerando ódio coletivo de sua estúpida presença. O exército de um homem só.
Nesta ocasião do refresco do telhado, vários homens estavam reunidos ao redor do fogão, filando cigarros uns dos outros, pegando cervejas a fiado na venda do cortiço, escutando música e conversando. O pobre diabo sai, indignado da gritaria que fazem em sua região. Entretanto, é a única cozinha coletiva para 14 quartos (destes, apenas quatro possuem algo próximo de uma cozinha, com fogareiro, pia improvisada e geladeira). Domingo é um dia familiar e para estes homens o cortiço é sua família, postiça, provisória, quando da solidão.
Os mais velhos contam de suas aventuras sexuais, os mais jovens jogam xadrez, fala-se das montanhas de dinheiro que ninguém ganha de verdade, fala-se da comida, da partida de futebol, conversa-se sobre a péssima qualidade do cortiço e os moradores incríveis que por lá passaram antes. E enquanto isso a embriaguez flutua numa crescente. O cretino do Salviano sai do quarto, todo amassado, indignado daquela festa, da comunhão das almas. Tenta algumas abordagens, mal-sucedidas, feitas na defensiva, dificultando qualquer simpatia da parte daqueles que estão ali. Chega conversando sobre o barulho que todos fazem, sobre a gritaria, a bagunça, aquela pequena multidão apinhada.
Depois de amplamente ignorado individualmente, inicia um infrutífero debate em voz alta, rasgando o ambiente, cortandos os petits comitées em curso, convocando alguém, aleatoriamente, para uma conversação, quase um desafio. Em geral convoca ao Lourival, seu rival íntimo, e dessa vez não fora diferente. Comentara algo acerca da música alta que Hector, o vizinho do quarto da frente do Salviano, escutava de forma inconveniente, um assunto recorrente. Entretanto, fizera isso em presença de Hector, estratégia estúpida e deliberada, fazendo-se como que ignorando a odorenta e ilustre presença do conviva peruano.
Rapidamente é rechaçado coletivamente, sai caminhando por entre as pessoas de forma débil, molóide, como se fosse um mendigo ébrio. Escarra ao lado do fogão, vai até a pia, sonoramente repete o processo. Uma tensão se cria. Ele fala em voz alta sobre o calor, “meu, como está quente hoje...”. Ele é como o bandido que entra no bar de velho oeste fazendo gracejos contra todos os outros homens que ali estão, desafiando-os. Sobe as escadas reclamando do calor. Do andar inferior, é possível ver Salviano passando de um lado para o outro, exatamente como um mendigo, trôpego, débil, conversando sozinho, discursando para uma platéia imaginária sobre a moral, o mundo e os bons costumes.
Seus cambitos vão cruzando a fresta do alto da escada, arrastando cadeiras, fazendo ruído, resmungando alto para que alguma platéia o acompanhe. Estão todos entretidos com seus afazeres dominicais, aquela vida lenta, pacata e ressaqueada de domingos de muito sol. É lamentável e ao mesmo tempo dadivosa a presença de Salviano. Sua debilidade física e mental são prova de que é possível se virar, mesmo caminhando rumo à completa errância. Mas isso só se saberá com o passar dos anos, donde não tenho a menor intenção de encontrá-lo... Enquanto vai mourejando dentro de sua cabeça, passando os dias como uma pessoa desagradável para a maioria das pessoas ao seu redor, ele segue vivendo, apesar das dívidas, apesar da fome, apesar de tudo.
Durante a semana, como Lourival está trabalhando, Salviano se sente um pouco senhor de seus domínios. Pode sair, pensar na poesia das coisas, andar pela casa conversando com as pessoas, refletir sobre a poesia do mundo e os textos que lhe foram encomendados pelos irmãos Barreto e por Almodóvar. Infelizmente só ele não compreende que as pessoas, em geral, não querem conversar com ele. Travou uma amizade completamente estúpida com Cauã, um tipo insuportável. Cauã mora no andar de cima, aluga um quarto e faz uso da cozinha e do banheiro coletivo do andar debaixo.
Musicista, criado em família de classe média-alta, Cauã acredita estar mudando o mundo. Largou o conforto da casa dos pais no Leblon, largou o conforto de comer carne, largou o conforto de um trabalho careta. Se auto-denominaria um abnegado, se essa parcela de adolescentes facistas nascidos no Leblon soubessem da existência da idéia de abnegação. Continua um típico menininho mimado do Leblon. Apenas não pega ondinha, loiras oxigenadas e nem mora no aprazível bairro de Manoel Carlos. Entretanto, odeia negros, pobres e toda a escória da sociedade com asco implícito em sua fala esotérica e pseudo-filosófica.
Sua amizade com Salviano serve apenas para que ele possa fazer chacota da cara do infeliz. Escuta-o sério e faz comentários cretinos na mesma seriedade, mas com o intuito de fazer-lhe troça. Salviano sempre leva-o muito em consideração e raramente percebe que está sendo fortemente zoado. Certa vez, um vizinho nosso, um alcóolatra que tinha a mãe louca e era obrigado, por uma combinação que fizera com o pai (para que este bancasse o aluguel no cortiço), a ter de cuidar da mãe semana sim, semana não, ligou para os bombeiros falando que a mãe tivera um ataque. Ela apenas estava louca, como sempre. Ele, entretanto, queria sair para beber. A opção mais rápida, para ele, se não me engano conterrâneo de Cauã, era acessar algum aparelho do Estado.
Contida por enfermeiros, a mulher fora atirada dentro de uma ambulância sob protestos de não ser louca. Cauã, vizinho de porta do rapaz alcóolatra, fora enfático: “Não somos obrigados a conviver com uma louca, o Estado que se vire para cuidar disso” (ou qualquer coisa do tipo que crê na existência do Estado para a higienização social).
Esta mulher era um fenômeno. Irritadiça, de modos intempestivos, passava os dias numa solidão profunda, exceto por seu rádio ligado no volume máximo, sempre fazendo longos discursos saudosos sobre a vida de estrela de tv que ela tivera. Certa vez, o alcóolatra (que não lembro o nome e é tão insignificante que sequer vou inventar um nome para ele) saíra para beber e o Lourival tentara fazer graça com a louca. Um pequeno caos se instalou no cortiço. Os temores de que aquele jovem atlético e alcóolatra da zona sul pudesse tentar matar o velho Lourival tomou a todos de pânico.
Entretanto, ovo contado no cú da galinha, Lourival sabia que estava a mexer com uma louca e que, afinal, se o rapagão chegasse bêbado e escutasse a mãe falar que o Lourival tentara comê-la, ele simplesmente ignoraria o que a velha tivesse dito como ignora 99,99999% de tudo o que sua mãe lhe diz. Lourival neste dia se recolheu para seu quarto, continuou tomando sua pinguinha, vendo programa esportivo da tv aberta e adormeceu de porta entreaberta, como uma criança, exalando o hálito dos sozinhos e dos cornos.
O alcóolatra e Cauã são duas conjugações de um mesmo processo. Jovens, estúpidos, com idéias facistas na cabeça. Ambos hare-boa, pseudo-hippies, amantes dos anos sessenta, de Janis Joplin, os astros estão confluindo, a natureza é linda e eu sou o cara legal, fizeram com que as quadraturas astrais os jogasse como vizinhos neste cortiço de Santa Teresa – oh, um bairro tão cool. Talvez exatamente por tantas coincidências cósmicas, pouco se falavam entre si. Compartilhavam, afinal, o segredo sinistro de terem nascido cheios da grana e quererem parecer favela hype, artistas de Santa, gente descolada e desapegada de bens materiais - senão jamais poderiam pegar artistas gringas.
Cauã, talvez movido pelo terror deste segredo em comum que ambos partilhavam, odiava ao alcóolatra. Cauã também era incapaz de ser amigo dos moradores eternos do cortiço. Gente preta e pobre (duas coisas que ele odeia sem declarar, obviamente, fazendo sempre um bom mocismo de dar bons-dias para todos, como aprendera com sua mãe na forma de lidar com subalternos como zeladores, empregadas domésticas e todas as outras profissões servis), ele usa da artimanha retórica para conviver em paz com sua ideologia impregnada. Odeia a Lourival porque o acha um ladrão e de moral duvidosa, as únicas coisas que um negro suburbano (no caso do Lourival, pior! Imigrante e idoso) pode ter lapidado em seu espírito durante toda a vida.
Nesta ressaqueada jornada dominical, tivera longa briga com Lourival por conta de
panelas e facas. Este sempre lavou a louça que todos deixam para lavar depois (por bebedeira, preguiça crônica ou pela existência do velhote) pelo motivo óbvio de pratos e panelas imundas serem alvo de ratos. Desde que cheguei ao cortiço, o próprio Lourival veio me falar que se eu sentisse falta de algum utensílio doméstico que o fosse procurar pois talvez ele tivesse lavado e guardado com ele para evitar que baratas e ratos ficassem passeando pelos objetos de cozinha. Isso sempre fora um ponto comum. Nesta noite de domingo, de debate esportivo na televisão aberta, Lourival bêbado, trôpego e feliz, estava escutando música brega altíssima, encerrando suas religiosas atividades etílicas dominicais.
Cauã, que não encontrava uma panela sua e muito irritadinho pela felicidade do velho, descera batendo os pezinhos no chão e fora dar piti para o velhote, falando que tinha sido roubado por ele. Como bom leblonense (ou lebloeta, sei lá) facista, tratou com o tipo como se deve tratar um tipo desses, em sua cosmologia: “aí mermão, tô cansado de tu, você é um ladrão e eu quero minha panela de volta” e ficou lá, cheio de raivinha gritando para o homem. O dono do cortiço, que achava que a beleza inata e zona sulzice do rapaz embelezam e engradecem em inteligência a sua ‘pousada’, fora tirar satisfações com o velho também.
Lourival apenas repetiu como das dezenas vezes que falara com todos, que apenas guardara a tal panela. Entretanto, isso manchou mais uma vez a relação entre os dois, que já estava bem gasta de outros carnavais. Essa fora mais uma das milhares de brechas que Salviano tivera para se aproximar de Cauã e tê-lo como cúmplice das atrocidades do velho. Ao Salviano, não se tem o que culpar o medo e o homo-erotismo que projeta no velho Lourival: Salviano, em crise de idade, aos seus quarenta e poucos anos, desempregado e remotamente cônscio de seu fracasso como artista, percebe que Lourival se sustenta como velho e é trabalhador, de um ofício rude e mal-remunerado.
Um artista como Salviano se enternece ao constatar cenário tão abjeto e, quiçá, brejeiro. Desse tipo de cena, ele encontra alimento para a alma intempestiva de artista. Aquelas mãos senis e calejadas mourejando dia após dia, suas idéias rudes, é tudo tão atraente, belo, poético... entretanto Salviano precisa conviver com este ícone proletário todos os dias. O que seria um ideal poético, vira a dura realidade, um enfadonho casamento. Ele gosta dos povos bravios, sendo ele um intelectual preocupado com as massas, vindo dela. Entretanto, quebra todo o romantismo essa convivência. Sem contar que o velho pode ser, por questões etárias, uma projeção horrenda dele mesmo, que quer ser um rapazola para sempre. São apenas conjecturas...
Só sei que a imagem daquele senhor de idade, imigrante das Minas Gerais, negro, pobre, sub-empregado, morador eterno do cortiço, alcóolatra e trabalhador, incomoda a Salviano e Cauã de forma especial. Talvez por ambos serem artistas inatos, poetas de uma geração. Cauã pela condição de macho alfa natural que crê carregar em seus genes. Salviano por seu desejo de ser de uma elite, intelectual e artística, mas também por sua crise de meia-idade e por seu fracasso ululante nessa escalada social.
Salviano, imigrante da Bahia para São Paulo, homem fracassado e tido por muitos, inclusive eu, com um tino natural para a mendicância, vive uma crise de encarar a realidade e viver seu sonho. É incapaz de perceber que o ódio comum que o une a Cauã é o mesmo que faz com que este jamais o considere um amigo seu. Para Cauã, Salviano é apenas um paraíba paspalho que ele pode fazer troça todos os dias, além de, como gorjeta, ter a higienização de consciência de, nalgum momento que for bancar o papel de alternativo (como quando fica de urubu ao redor das jovenzinhas que freqüentam a Lapa), poder falar que até tem um amigo paraíba – seu personal-pobre-de-estimação.
Pois bem. Apesar desse cenário, Salviano procura a Cauã como a um amigo, um guru, ou um tipo de alguma superioridade. Escuta a vasta defecação oral que Cauã profere com esmero e imponência, ensinando-o as formas como ele, Cauã, acredita serem as mais toscas para levar donzelas para a cama. Cauã sempre faz o joguinho com Salviano de falar, com muita austeridade, exatamente o contrário do que ele acha certo – sendo, de qualquer jeito, uma grande merda. Talvez seja uma forma de proteção, de evitar que um tipo reles possa ter comportamentos parecidos com os de tão dintinto e desapegado rapaz.
A chama desta amizade é alimentada sempre pelo ódio ao velho mineiro. Geralmente Cauã cede atenção ao pobre diabo enquanto está lavando roupas, cortando as unhas ou cozinhando alguma coisa vegetariana, pasta inssossa cheia de temperos, orgânica e de origem indiana. Como Salviano tem todo o tempo do mundo desde que abandonara o ofício plebeu de garçom para se dedicar exclusivamente à arte, ele tinha basicamente as horas do mundo para andar atrás de Cauã perguntando-lhe coisas sobre a terra, os céus, as estrelas e xoxotas, bem como tentar relatar a grande perseguição que sofre por parte de Lourival. Neste fatídico domingo, entretanto, ele não poderia contar com a ajuda de seu fiel amigo, que dormia, enquanto o panacão ligava a mangueira, golfando água de forma débil até ganhar consistência.
A pinga já rolava solta no andar debaixo, devia ser no máximo meio-dia. Daqueles cambitos que circulavam no andar de cima resmungando, viera a genial idéia de regar o telhado do cortiço, para amenizar o calor dominical. Salviano ligara a mangueira, despejara litros e litros de água, até que milhares de goteiras cagaram a comida, o xadrez e a tarde que se iniciava no cortiço. Plantação de zinco à vista no cortiço. Ponto pro maluco e telhado regado.
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