segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Superfreak

Depois de subir a ladeira, o calçamento urbano de pedras grandes, quadradas, virar à esquerda onde os ônibus quase acertam o muro da casa do vizinho, enquanto sobem alucinados, cruzando a mata semi-virgem de Santa Teresa, subo a escadaria larga de matinho crescendo entre as pedras, quase tapete de gramíneas no meio daquelas pedras-ruínas de casario velho e antiquado, de rocambolesmos e rococós, de flautas e sotaques ítalo-franco-hispânicos, torno à direita e caminho pelas escamas de pedra da serpente que corta o bairro. As ruas do bairro são sinuosas, curvilíneas, vão se acomodando aos morros, à topografia, intensa obra de engenharia pra mim, do planalto central, ver essas gentes se agarrando na beirada de morros.

E caminho, caminho, caminho, pro alto e avante. Vou derretendo, até chegar somente o palito do picolé, no alto do morro, faça sol, chuva, neve. Sempre se derrete enquanto sobe pelas ruas-serpentes. Entro em casa e a primeira coisa que me toma de assalto é a suntuosa vista da cidade, urbana, concreto, luzes, aquela grande escultura. De longe, a cidade está tranqüila, linda, serena e imóvel. E depois de chegar ao cume da cidade, vou descendo as escadas de casa, cravada na beiradinha do abismo que cai na lapa, nas ruas imundas. Desço as escadas com as baratas voadoras da lapa, transgênicas, x-men, insetos gigantes de seriado japonês, voadores, pestilentos, batendo na minha cara.

E vão surgindo os sons e aromas da vida em cortiço, as pessoas passando, seminuas, suarentas, cansadas, desempregadas, carentes. Todas são carentes, todas querem demais conversar contigo, mesmo com você tentando de todas as formas escapar delas. São como o suor, impregnam no corpo, viscosos, falando sem parar, te acompanhando enquanto você tenta encontrar o refúgio do seu quarto. E quando você o alcança, batendo a porta contra os corpos de gentes falando-lhe absurdos e querendo um pouquinho de atenção, você é tomado do calor do quarto abafado, do telhado de amianto, das janelas que precisam ficar fechadas para prevenir a praga das baratas mutantes.

Torna-se a abrir a porta do quarto e estão todos lá, dezenas de homens carentes, querendo conversar, querendo falar das coisas da vida, da vida de acampamento de exército, de homofóbicos, sexistas, anti-semitas. O convívio em cortiço com homens é o espaço privilegiado para acompanhar o pior das opiniões da humanidade. Todas as conversações mais asquerosas e nojentas são tratadas ali. Os homens agem como gorilas. Velhotes carentes, caras que têm vergonha de estarem na casa dos quarenta anos e agem como meninos chorões.

Reza a lenda que essa terra de homens já teve muitas mulheres, que elas circulavam tranqüilamente por aqui, também seminuas, apaixonando esses caras, apaixonadas por eles, falando línguas estranhas. Não consigo imaginar mulher alguma com esses homens. Enquanto isso, escuto um deles falando de mulheres, um dos assuntos preferidos nessas rodas maçônicas, de seita secreta, de homens que só têm à cachaça para recorrer, o carinho maior em suas vidas, acalentando seus corações.

Louco, com desvarios em sua cabeça, escutando uma merda de reggae-rap-dancehall-rocksteady o dia inteiro, toda hora, todo minuto. E ele escutar significa todos escutarem bem alto, bem chato, bem invasivo. E te puxa pela mão, quer lhe mostrar as fotos que alterou em photoshop para parecer mais jovem, quer falar que é amigo de Manu Chao, quer cantar a nova música que fez, uma merda de música que fala que planta uma merda de maconha em casa, lamentar o apartamento abandonado em Ipanema, da vida nojenta e asquerosa de playboy que hoje é vivida pela metade, tendo que morar num quarto minúsculo num cortiço em santa Teresa. Mas em Santa Teresa, que é o que importa. Seu quarto e suas roupas fedem um aroma adocicado, absurdamente nojento, asqueroso, vômito no chão.

Um quarto absurdamente imundo, mal cuidado, feio, desarranjado, projetando todo o caos interno de um cara criado a leite com pêra e ovomaltino, de quem chora que não tem um centavo no bolso, lhe fuma um maço de cigarros, come da tua comida e no dia seguinte chega de adidas de duzentas pratas, novinho em folha e vai para frente do espelho, como uma menininha de quatorze anos, experimentar roupinhas para escolher com qual sair. E sai do quarto, interrompe as conversas dos outros, pede para que opinem como consultores de moda, não escuta a ninguém, volta para o quarto e se troca novamente. Mas, ah, o chapéu está combinando com o tênis. Assim fica parecendo que me preparei para sair de casa, não posso sair. E volta para o quarto de novo, após interromper a conversa dos outros pela segunda vez sem a menor cerimônia.

Enquanto isso o outro trintão desempregado e paranóico (literalmente, clinicamente, quimicamente, psicologicamente, sociologicamente, matematicamente paranóico), versa sobre a queda dos anjos do firmamento, como Edward Gibbon falando da queda do império romano, usando pitadas de sutilezas de uma poética caetânica-glauberiana, um poeta nato, genuíno, dessa coisa atávica sem simbologias, pós-moderna, pós-contemporânea, de relações fluidas e sensações infinitas, entende, bicho? Essa poética do que é e do que não é? Ééééééééé... Ô meu! Bahiano de nascimento, paulista de criação, odeia a ambos, bahianos, paulistas, não é a alma do que ele considera brasileiro, porque o brasileiro é bom, apesar de burro, atrasado, poeta, louco, mendigo, entende, meu? Ééééééé...

E coça o saco, estica bizarramente o pé e o coloca sobre a mesa onde todos comem, para me cochichar que todos na casa são uns porcos nojentos e que caras limpos e asseados como eu e ele inevitavelmente sofreremos vivendo ali. Puxa um grande escarro quase do canal retal de seu ânus e vai cuspir na pia onde se lava a louça ou no ralo em frente à porta do meu quarto. Na mesma pia onde ele acabou de jogar fora toda a borra dos cinco litros de café que ele faz para deixar um mês pegando mosca e mofando dentro de seu quarto também imundo. Em seu quarto, ele guarda garrafinhas plásticas d’água, pois ele odeia sair do quarto em dias frios para mijar, e nesses dias de março no Rio de Janeiro têm feito uns quarenta e cinco graus negativos por vários dias. Ele vai juntando suas garrafinhas cheias de urina no parapeito da janela, até que o vento as empurre para o terreno baldio abaixo da casa. Outro dia o dono do terreno devolveu-lhe algumas garrafinhas cheias de mijo, afinal de contas ele deve ter um apego afetivo pelo mijo dele. Saiu de seu corpo, é quase seu ainda, apesar de não fazer mais parte dele. As zonas de tabu de caras asseados, como eu e ele.

E novamente retorna a Barbie trintona com seu tênis branco e novo, suas roupas imundas e fedidas, para perguntar se assim ele está bem. Olho para ele, meio gordo, as carnes já bem envelhecidas, o rosto cheio de vincos, de quem já bebeu demais e se cuidou pouco, e uma roupinha de adolescente de colégio, um bermudão abaixo da cintura quase mostrando suas bolas, uma camiseta toda recortadinha, milimétrica, para mostrar o leão da tribo de Judá em seu ombro, o bonezinho de lado, como deve ser um jamaicano cantor de dancehall que leva seu estéreo no ombro contrário à aba do boné. Uma boneca (jamaicana) preparada e vestida, de quase quarenta anos. Parece aquelas velhotas de oitenta, noventa anos, com roupinhas de garotinhas, cheias de maquiagem no rosto caquético. E pela milionésima vez falo que está ótimo, ele se convence. Desliga a merda de reggae-dancehall-rocksteady-rap-hip-hop-trip-hop e vai embora, embonecada, pensando na namoradinha adolescente de 25 aninhos, jovem, na flor da idade, com os hormônios à flor da pele, uma tormenta em sua cabeça.

E antes de sair versará longamente sobre as amigas piranhas que ela tem, todas solteiraças, lindas, maravilhosas, sedentas por sexo sujo, saindo com ela, levando-a para o mal caminho, para o caminho do adultério. Vezenquando o desejo dele é mais pelas amigas que pela namorada, muito decidida por ele, apesar do joguinho sujo e infantil de deixar todos os homens a bolinarem e darem em cima dela na frente dele. E ele se sente um velhote, quer mostrar os amigos, a banda de Manu Chao, mas ele teme que ela se deixe ser encantada pelo baterista ou qualquer outro da banda.

E fica o outro trintão, o poeta glauberiano-caetânico, que agora começa a falar que tanto a boneca jamaicana como o velhote que mora na nossa área conspiram contra ele. Afinal, todos estão conspirando para que sua vida seja cheia de infortúnio. Mas ele é guerreiro, ele é mais forte que eles. E enquanto fala que o velhote malvado e doente, cheio de sutilezas e meias-palavras, não deve ser digno da minha confiança, chega o tal. O coroa chega cansado, é o que mais trabalha de nós quatro, seguramente, até porque só trabalhamos eu e ele. Os outros estão desempregados, com muito tempo para tramar todo tipo de conspirações em suas cabeças.

O coroa trabalha em serviços braçais nas casas de ricaços da barra da tijuca. Vê toda a riqueza e pujança dos nojentos da barra todos os dias. Chega-nos contado de casas onde trabalhou fazendo sistemas de vídeo ou segurança como sendo as casas em que ele já morou. Conta os detalhes das suas casas imaginárias, dos dias que ele foi rico, que morou em coberturas em Ipanema, Copacabana e da barra. Conta dos empregos que nunca teve, os empregos que eram de seus patrões, fala como era difícil aquela época, de muito trabalho e muito dinheiro. Hoje ele é feliz desse jeito, na verdade. Morando num barraco imundo com pessoas loucas. Exceto ele é louco, claro, me confessou outro dia.

E começo a perceber como o poeta glauberiano-caetânico estava certo. O homem é sutil. Como um elefante em loja de cristais. Chega falando de mulheres, no palavreado mais asqueroso da face da terra, da forma como as phode, como lhes tira todo o dinheiro, porque mulher não vê um centavo dele. Mulher tem que o sustentar. E fala, fala, fala. O poeta começa a falar também, com uma sutileza de poeta romântico, de como gosta de phoder mulheres, comê-las bem sujo. Não param de falar disso, varam as madrugadas conversando sobre as mulheres espetaculares e cheias da grana que eles comem sempre, que os sustentam, que lhes enchem de presentes, como a caneca com uma impressão “exclusivo do meu grande amor” que o poeta possui.

Este possui uma tensão homoerótica pelo coroa. Fica-o observando o tempo todo e atribui a uma loucura implícita o desejo de sempre estar conversando com ele. Outro dia, enquanto esperava um amigo para sair, ele parou-se ao meu lado e ficou observando de longe o coroa, de shorts de tactel, sem camisa, dando em cima da gordona que possui uma vendinha no andar de cima da casa. Observava-o de olhos brilhando, um sorriso infantil no rosto, braços cruzados, encostado no parapeito do terraço. Virou-me e falou da energia do velhote, que supostamente é muita, e rogava-me que o imaginasse um guitarrista, a energia dele numa banda e ele de guitarrista.

Fitei o coroa de pé, meio corcunda como todos os velhos, encurvado sobre a gordaça bizarra e chamando-a de meu amor, gesticulando com a debilidade física de um velho alcoólatra, e o imaginei vestido como os caras do Kiss, ou então como os caras do Black Sabbath ou do Deep Purple ou então com os cabelos do Morais Moreira ou do Pepeu Gomes. Desde então, sempre que estou deprimido, imagino a energia dele como guitarrista de uma banda. E posso rir um dia inteiro só com isso. Mas para o poeta glauberiano-caetânico, aquele é um sentimento quase íntimo, um fetiche oculto, por um velhote de bigode e dentes podres. Uma paixão no mínimo enternecedora.

Um comentário:

Vera Menezes disse...

"literalmente, clinicamente, quimicamente, psicologicamente, sociologicamente, matematicamente" bem escrito, de um único fölego...