Corro os dedos pelo isqueiro, o abandono já está completo, nem a sensação de estar presente existe entre os convivas, invisibilidade social momentânea, flutuar discreto e cavalgar por outras sutilezas, o desenho do rótulo, a tatuagem nas costas, o nó na gravata, a cor do tênis, o detalhe no brinco, a forma da árvore, passatempos ligeiros de desligar da mente e boicote à desagradável obrigação de conjunção de abismos, de corpos que se espatifam no chão feito balão cheio d’água. Acendo o cigarro, fumaça prateada, densa, enevoada e espessa cobrindo, encobrindo minha displicência fingida do lugar. Dedos nos copos, digitais timidamente dilacerando qualquer álibi, registro inconteste de sua própria culpa e responsabilidade, ficha criminal puxada e analisada. Retorno à mesa, o eterno retorno. Chuvas de palavras, explosões de entonações, silêncio abismal. A fita acabou, a agulha risca o papelão do vinil e todos se silenciam, aguardando a velha boa-nova ou pensando na merda mais adequada para escapar à outra rodada de encare ao vazio que toma conta implicitamente da situação. Olham-se uns aos outros, conferem seus copos e garrafas. Trago longo, boca nervosa, asco e tontura lancinante. A cabeça retorna de sua inclinação agora alterada, visivelmente anestesiada, mas chocalizada, fogem os formatos cotidianos. E os olhares trocam o sorriso de assentimento, vago, escandalizado, a não-aceitação por completo. Flui vapor quente da tua boca, que bate na minha cara feito gelo. E já não sei se congelado pelo meu frio por ti ou se pelo seu frio, trocas térmicas muito confusas e inconclusivas. Medos íntimos de incapacidade de compreensão de outras formas de existência, ou de inexistência. Vai saber.
Tudo dura um minuto. Um minuto que vivenciado esperando-se cada segundo dura uma eternidade, eternidade intocável, inescapável como tocar copos, peles, cabelos. Explosões de hormônios, rearranjos internos de açúcares, proteínas e outros que restabelecem a cabeça em outra ordem, nova esperança, novos percursos e novos tempos. Corpo emerge do fundo da cadeira e dele brilham os olhos, as narinas e os narizes-matizes-tatos. Cordas enlaçam a tudo e mesmo sem se ver na obrigação de desvencilho, sabe-se daquilo que prende. E a corda da liberdade bem firme ao pescoço estica-se com o corpo pendendo abaixo e novas investidas suicidas são dispostas como dados correndo no carpete verde duma mesa de apostas, fugindo o tempo, a dignidade e qualquer compreensão de um eu que perdura no tempo, que existiu antes da mesa e que bem possivelmente existirá a seguir, absurdo colossal essa segurança e essa introdução na lógica das coisas lógicas, óbvias completas e sem medos. O dedo erguido, o dosador vertendo lágrimas cor de caramelo, o copo novamente resituado numa posição de afogamento íntimo e de ressaca moral, viagem pelos canos, ápice da transubstanciação do ser alcoolizado, poluído, impuro, nocivo à mesa tão bem posicionada com toalha, pessoas, cadeiras, cardápios, comidas, bebidas e palavras. Tudo bem disposto, harmonizado, desfile militar de palavras jogadas ao vento como papel picado, recepção e honras aos vitoriosos.
E enquanto os dedos se foram, fica o escandaloso corpo estribuchado, pendurado por uma corda, enojando e massacrando presenças tão ilustres e distintas, que nada fizeram para que tal efeito dominó viesse dar nessa escatologia barata e perversa donde fluem espasmos de auto-boicote, auto-destruição e desejo por carinho, afago que desperte para outra configuração de elementos, a incomunicação é completa ao ponto de fugir a lembrança, ficarem resíduos desmontados, desencaixados sobre os fatos, fatos que jamais existiram, sensação de coma induzido para amenizar a insuportável anestesia das coisas tomadas pela onda, pelo vento, pela bactéria, pelo vírus. Tudo transparente, invisível, como os mesmos argumentos de incompreensão à tamanha bravata desnecessária. Tudo fica vulnerável e a cada ataque fico tão vulnerável quanto. Mas tudo tende à destruição, os livros caindo das estantes, os carros pegando fogo, as árvores tombando pesadamente ao chão. E do chão, do chão, do chão, a volta é dura, é penosa, sensação de mutilação do corpo, da mente, da alma pobre e tosca que acaba de ser revelada a partir da fuga da etiqueta, da pompa e circunstância, das danças de salão e das filas de supermercado.
Um comentário:
se falta-lhe algo... não são os dedos. a mão e a emoção que escorre, corre e desorre dela e deles.
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