domingo, 17 de fevereiro de 2008

Dedos

Corro os dedos pela barra da toalha de mesa, os mesmo dedos que percorreram seu braço enquanto conversávamos. De movimento imperceptível, como pluma riscada sobre uma superfície muito sensível, fluía de mim um desejo de leve estimulação. Infelizmente, quanto mais olhávamos um para o outro, menos eu me interessava. E tudo o que saía de sua boca destruía pequenas expectativas cotidianas, devaneios pungentes que de antemão sei que são delírios, no fundo. Se corro esses mesmos dedos que percorreram a toalha de mesa agora no copo de conhaque e me distancio de todos, e saio dessa ilha que é essa mesa cheia de gente e olho para cima como se fosse observado de lá do alto e tento escapar daqui, é porque o fascínio já se foi. E novamente o fascínio escapa pelos dedos desgrenhados e desesperados por agarrar cores, cheiros, sabores. E mais uma vez sobra-me o mesmo roteiro perdido e empoeirado que, decorado eras atrás, já não serve para o propósito de perpetuar uma postura, um modus operandi, uma moral sobre os acontecimentos e detalhes que deles emanam. Deixou de ser lenda, mito, carta de intenções, é horror real, jogo de cartas marcadas. E mais uma vez sentado, e mais uma vez ébrio, e mais uma vez você. Qualquer você, qualquer um, quelque un, formas nocivas de convivência gregária e pré-conservada sem fórmulas escritas, como a receita da titia. Aquela mesma delícia o resto da vida. Que delícia, conhaque, café, cigarro, charuto, pessoas, música, mendigos, garçons, aves, quiromantes, céus, frios, calores, humores. Lindo, lindo demais. Bolos, paçocas, pães-de-queijo, manés-pelados, bombons, biscoitinhos de nata. Delícias secretas que ficam em suspenso, à espera daquele que segure a galinha pelo pescoço, a nau de Colombo que fora encontrada por sereias e monstros míticos e supostamente uma falta de criatividade indígena incapaz de perceber a mesma nau mágica chegando, alertada apenas pelo distinto que pode enxergar além da besta e alienante realidade. Superioridade no sectarismo, talvez mesmo no proselitismo exacerbado em busca de conforto ante à destruição da expectativa de pactos seminais e libidinosos.

Corro os dedos pelo isqueiro, o abandono já está completo, nem a sensação de estar presente existe entre os convivas, invisibilidade social momentânea, flutuar discreto e cavalgar por outras sutilezas, o desenho do rótulo, a tatuagem nas costas, o nó na gravata, a cor do tênis, o detalhe no brinco, a forma da árvore, passatempos ligeiros de desligar da mente e boicote à desagradável obrigação de conjunção de abismos, de corpos que se espatifam no chão feito balão cheio d’água. Acendo o cigarro, fumaça prateada, densa, enevoada e espessa cobrindo, encobrindo minha displicência fingida do lugar. Dedos nos copos, digitais timidamente dilacerando qualquer álibi, registro inconteste de sua própria culpa e responsabilidade, ficha criminal puxada e analisada. Retorno à mesa, o eterno retorno. Chuvas de palavras, explosões de entonações, silêncio abismal. A fita acabou, a agulha risca o papelão do vinil e todos se silenciam, aguardando a velha boa-nova ou pensando na merda mais adequada para escapar à outra rodada de encare ao vazio que toma conta implicitamente da situação. Olham-se uns aos outros, conferem seus copos e garrafas. Trago longo, boca nervosa, asco e tontura lancinante. A cabeça retorna de sua inclinação agora alterada, visivelmente anestesiada, mas chocalizada, fogem os formatos cotidianos. E os olhares trocam o sorriso de assentimento, vago, escandalizado, a não-aceitação por completo. Flui vapor quente da tua boca, que bate na minha cara feito gelo. E já não sei se congelado pelo meu frio por ti ou se pelo seu frio, trocas térmicas muito confusas e inconclusivas. Medos íntimos de incapacidade de compreensão de outras formas de existência, ou de inexistência. Vai saber.

Tudo dura um minuto. Um minuto que vivenciado esperando-se cada segundo dura uma eternidade, eternidade intocável, inescapável como tocar copos, peles, cabelos. Explosões de hormônios, rearranjos internos de açúcares, proteínas e outros que restabelecem a cabeça em outra ordem, nova esperança, novos percursos e novos tempos. Corpo emerge do fundo da cadeira e dele brilham os olhos, as narinas e os narizes-matizes-tatos. Cordas enlaçam a tudo e mesmo sem se ver na obrigação de desvencilho, sabe-se daquilo que prende. E a corda da liberdade bem firme ao pescoço estica-se com o corpo pendendo abaixo e novas investidas suicidas são dispostas como dados correndo no carpete verde duma mesa de apostas, fugindo o tempo, a dignidade e qualquer compreensão de um eu que perdura no tempo, que existiu antes da mesa e que bem possivelmente existirá a seguir, absurdo colossal essa segurança e essa introdução na lógica das coisas lógicas, óbvias completas e sem medos. O dedo erguido, o dosador vertendo lágrimas cor de caramelo, o copo novamente resituado numa posição de afogamento íntimo e de ressaca moral, viagem pelos canos, ápice da transubstanciação do ser alcoolizado, poluído, impuro, nocivo à mesa tão bem posicionada com toalha, pessoas, cadeiras, cardápios, comidas, bebidas e palavras. Tudo bem disposto, harmonizado, desfile militar de palavras jogadas ao vento como papel picado, recepção e honras aos vitoriosos.

E enquanto os dedos se foram, fica o escandaloso corpo estribuchado, pendurado por uma corda, enojando e massacrando presenças tão ilustres e distintas, que nada fizeram para que tal efeito dominó viesse dar nessa escatologia barata e perversa donde fluem espasmos de auto-boicote, auto-destruição e desejo por carinho, afago que desperte para outra configuração de elementos, a incomunicação é completa ao ponto de fugir a lembrança, ficarem resíduos desmontados, desencaixados sobre os fatos, fatos que jamais existiram, sensação de coma induzido para amenizar a insuportável anestesia das coisas tomadas pela onda, pelo vento, pela bactéria, pelo vírus. Tudo transparente, invisível, como os mesmos argumentos de incompreensão à tamanha bravata desnecessária. Tudo fica vulnerável e a cada ataque fico tão vulnerável quanto. Mas tudo tende à destruição, os livros caindo das estantes, os carros pegando fogo, as árvores tombando pesadamente ao chão. E do chão, do chão, do chão, a volta é dura, é penosa, sensação de mutilação do corpo, da mente, da alma pobre e tosca que acaba de ser revelada a partir da fuga da etiqueta, da pompa e circunstância, das danças de salão e das filas de supermercado.

Um comentário:

suely andrade disse...

se falta-lhe algo... não são os dedos. a mão e a emoção que escorre, corre e desorre dela e deles.