domingo, 2 de março de 2008

Rio Ah! Um

Meu time acabava de demonstrar sinais claros de que a segunda divisão estava cada vez mais próxima, enquanto eu tomava uma cerveja, sozinho, diga-se de passagem, na companhia de Judy. Não conseguia decifrar exatamente o que ela queria, atendendo minha ligação, mostrando-se solícita em me encontrar recém-chegado ao Rio de Janeiro. Ela estava linda, deslumbrante. O Corinthians, jogando igual um time de segunda divisão. Em poucas horas saberia do meu desenrolar com ela. Em poucos dias saberia o desfecho tenebroso de meu time.

Tomei duas cervejas rapidamente, o que me deixou levemente bêbado e com a perspectiva de ter uma caganeira, porque a cerveja sempre ficava quente no meio do caminho, sem camisinha, semi-gelada, tomada sozinha. A mina estava inquieta, olhava nos olhos, fugia dos meus depois d’algum tempo, deixava o colo a mostra, ria de orelha a orelha, facilitava o assunto, mas eu nunca sabia se era da mesma perspectiva que compartilhávamos. Sempre alguma reticência após meu esforço descomunal em tentar manter vigor no assunto, interesse desmedido por tudo que propúnhamos. Qualquer assunto eu me esforçava por achar interessante e provocava tempestades de palavras, era capaz da minha mandíbula cair.

Judy tem muito daquele esquerdismo patético de centro acadêmico, um encantamento juvenil pela palavra e pela heráldica esquerdista na forma mais opaca possível, que torna movimento punk, anarquia, maoísmo, leninismo, e todo o resto de teorias e vivências de esquerda algo sem brilho, são apenas e sempre os mesmos símbolos, as mesmas coisas, as estátuas de Lênin, as bandeiras vermelhas, as foices, martelos, livros de capa vermelha, tudo farinha do mesmo saco. E no meio disso uma dificuldade crônica de inserir qualquer outra perspectiva que fuja aos manuais do que consideram de esquerda... Sei lá, phoda-se tudo isso. Mas creio que pra traduzir esse esquema pitoresco-carioca, é possível utilizar-se do estudante de DCE caricaturizado nalguma novela global.

E meu Corinthians continuava lá, contra a cruz-de-malta, agonizando, num Pacaembu lotado, esperançoso d’alguma mudança. A coisa não estava boa. Parecia um bando de perna-de-pau, eu poderia ser titular num time daqueles. Olhava pouco para a televisão, mas bastava um relance para ver o quão desanimador estava a situação. Mas dentro disso, pouco me importava... Estava num bar cheio de cocotas, a mina toda gostosinha na minha mesa, sorrisinho dela de orelha-a-orelha, tinha alguma esperança, mesmo com a mina num papo brabo de abstemia. Minha estratégia era beber por mim e por ela, confluindo os desejos de dois bebuns pra poder emplacar uma phoda massa como da outra vez.

Enquanto bebia, via o jogo, falava pelos cotovelos, falava pelos pulsos que quase caíam da minha mão, admirava a gostozinha na minha frente, as delícias que circulavam ao meu redor, sonhava com uma nova trepada com ela, meses depois, revigorado, sedento, e tinha de mirar no celular, na expectativa da chegada de Biaphra, que vinha de Brasília pra se encontrar comigo. Supostamente era pra ele ter chegado, mas enquanto nada disso acontecia, esperava por ele, esperava para mandar uma desculpa bem dada para não recebê-lo na Cinelândia às 22h e pouco, orientá-lo a chegar no bar onde estava, o fim do arco-íris – da Lapa. Ficava cada vez mais bêbado, quando pedi a caipiroska e tomei-a quase que de um trago, puro açúcar, puro fiapo de limão, pura vodka barata e pedi outra. E pedi mais outra.

Judy recebeu um telefonema, falou demoradamente, um fiapo de renovação tomou conta de si mesma. A irmã fedida dela que o pobre Tibério encarou para me ajudar da vez anterior que nos conhecemos, que teve de dar garras homéricos e gastar sua melhor lábia rebelde para encantá-la, estava a chegar com seu namoradinho. Judy quase saltitava de emoção, seus olhinhos brilhavam. Bastou que ela desligasse o telefone para que duas amigas dela aparecessem e, sem a menor cerimônia, sentassem conosco. O Corinthians estava lá, na televisão, apanhando. Sentaram-se as duas, com um terceiro tipo, e se regozijaram do clube cruz-maltino estar a vencer. Fui longamente zoado. Fui longamente sorriso amarelo. Fui longamente desesperançado de uma phoda decente, fui longamente preparado para escutar ondas tsunâmicas de barbaridades.

Sinto-me completamente desmotivado, repetindo os cenários dantes encantadores, agora mera tentativa de resgate d’algo intenso, parece que tudo míngua. Da ponta de desgosto, tento recuperar algum fio jazzístico, que reencontre a força que esvai de mim no momento, torno a buscar a pulsão mais intensa que vomitava ébrio de mim doutra vez. A cidade de coisas velhas, de histórias loucas, de cartas marcadas, parece não mais me encantar, o filho do modernismo, das linhas retas, dos traços duros, das árvores tortas, do tédio com T, das mãos calejadas para a modernidade. Phoda-se. Biaphra chega, Biaphra escreve, Biaphra traz um fio d’esperança pra novos contornos da noite. Biaphra que do Centro, desce de táxi até o arco-íris errado, para a granja das loucas, para as frangas perdidas, que lhe vistoriam dos pés à cabeça.

Saio correndo, no meio de gentes, postes, carros, roquenrou, samba de playboy, putas, travecos, urbanos, jogo do bicho noturno, solitários, mesa vazia de novidade sem o forasteiro provinciano do interior. Tropeço nas pessoas, nas mágoas, nos risos, nos beijos, nos bêbados, com a face lívida, com o cigarro na mão, sem fôlego, até Biaphra. Abraço, apertado, sem ar, sufocado, alegria, desespero, agitação, loucura. Temos nove horas até a prova, temos cervejas gelando para nós, temos todos os bêbados, todas as xoxotas, todas as putas, todos os sorrisos para nós. Suas bolsas, suas roupas, seus dinheiros, nossos caminhos, nossos desencontros de ruas boêmias, de calçadas imundas, de mendigos dormindo no chão, de poças de lama. O riso é descontrolado, a alegria toma conta de mim. Até a zoação sobre o Corinthians me alegra, um fio de familiaridade paira no ar.

Entramos numa crescência, infinita, desmedida. Sentamos no pote de ouro do final do arco-íris, falamos desmedidamente. I'm a street walking cheetah with a heart full of napalm. As cervejas vertem aos borbotões sobre os copos, a fiel grita desesperada na televisão, a desgraça e a alegria suprema encontram-se fugidias na mesa do bar. A amiguinha de Judy, da pele mais alva de fidelidade seletiva apenas contra toscos, podres e fodidos, desmancha-se em sorrisos e interesses sobre Biaphra, mas este sequer percebe. Judy quer me apresentar de qualquer maneira para o namorado da irmã, militante d’alguma merda, ‘amigo’ de alguém importante do movimento que, infelizmente, ele troca o nome pelo de alguma ministra. Mas a revolução carioca, a revolução rede globo, não tem problemas com esses erros, as pessoas chegam a ser parecidas em sua perspectiva revolucionária.

Passo a fazer o teste da militância, o American Idol da esquerda, donde sou testado se conheço da realidade brasileira, se conheço todos os movimentos sociais que existem no país, se estou a par de tudo o que acontece no mundo e na ideologia de esquerda, enquanto a fedida da namorada do cara e irmã de Judy fica lá, com seus olhinhos brilhando, apaixonada, vendo seu Prestes fazendo a revolução na mesa de bar, as barbaridades mais revolucionárias do mundo, estamos em 68, quase que num misto de guerrilha na selva e de intelectualidade francesa discutindo eufórica, na Champs-Elysées, as primaveras, os tanques. Massacre intelectual. E o cara lá, com a barba ao redor da boca suja de espuma branca e fedorenta de cerveja choca, tentando me massacrar com os olhos, mirando fixo, querendo me testar, querendo notoriedade, querendo ser comentado no escritório do movimento de Brasília.

Estica um cartão, da ponta dos dedos amarelados de fumar trevo como se estivesse na selva boliviana. Seus olhos brilham, bem como todo o restante da mesa, da parte carioca, que jura fazer a revolução sentada em bares elitistas no revitalizado reduto boêmio da cidade. Da mão esticada, dirige-se até a garrafa de cerveja recém-chegada e verte metade desta dentro de sua latinha já imunda, amassada, choca. A heráldica esquerdista, o arquétipo do militante, desgrenhado, desregrado, barbudo, sujo. Sua cocota quer atenção, eu estou cagando pra ele, quero a atenção de Judy, que trava um papo qualquer com Biaphra. Largo os dois em suas carícias ‘rebeldes’ e torno a exalar sexo, sêmen, língua, saliva, mordida. Mas Judy precisa contar, contar que este homem com quem conversei já foi personagem de livro, já foi cabra marcado pra morrer, blábláblá... E lá vamos nós rumo à embriaguez completa. Bebo, bebo, bebo.

Fica pra domingo a decisão final, o golpe de misericórdia, a tensão completa para o descenso do meu querido time, que sai sem eu nem perceber da televisão. Só me restou a certeza, incrédula, mas inevitável, de mais uma derrota. De repente, um zilhão de coisas passam despercebidas, fico pesado, os movimentos alterados. O tempo rodou num instante e agora a boca da madrugada se abre inteira, larga, sedenta, quer me comer inteiro, sem dentes, sem nada, como se eu fosse a cerveja que me pôs nesse momento de embriaguez insana na noite carioca. Biaphra estava lá, sorrisos, gracejos, cansaço, óculos imundos, cagando para a prova do dia seguinte. Propusemos a nós mesmos jogar alto, apostar muito na madrugada, donde tiraríamos alguma bala ou farelo para revigorar na prova de manhã cedo. Fomos. E quem vai, quer, está lá, domina, deseja, é o ponto irradiador dos milhões de vetores que escapam pelo mundo.

Judy decide partir, para meu completo e embriagado desgosto. Venceu-me pelo cansaço, deixou-me sem beijo, sem phoda épica, deixou-me com seus amigos que estou a cagar em suas cabeças. Foi-se, cabelos ao vento, bunda maravilhosa dançando para a direção errada, longe de mim. Biaphra rapidamente me repreendeu, buscou recuperar meus princípios mais agressivos e sexuais possíveis; breve, mas incisiva palestra sobre quem realmente sou, ou deveria ser. Levanto com pouca confiança, quase que empurrado por mim mesmo, pelo estigma que costurei pra mim mesmo, e fui atrás de Judy, atropelando os milhões de pessoas que circulavam a Lapa do trecho do bar até sua casa. Dos meus olhos, ela brilha, visível, emana alguma energia sexual das minhas lembranças, de nossos encontros d’outros carnavais.

Alcanço com um dedo seu ombro direito, acompanho seu passo pelo lado esquerdo, gracejo, rio, tento convencê-la de me deixar acompanhá-la, sob o argumento mais antiquado (mas não menos convincente), de fazer-lhe companhia, de jogar mais uns instantes de conversa fora, de aproveitar cada instante de minha estadia na ciudad, da possibilidade de sua inebriante presença. E da sinfonia de risos, fragmentos de conversas, buzinas, carros, polícias, pedintes, bêbados, vou com um nervosismo tomando conta de mim, peso enorme sobre os meus ombros, minha cabeça pesa uma tonelada, sinto-me um juvenil. Muita pressão que sai de mim e volta pra mim, que sai de mim e vai pra ela. Péssima a conversa, lembrança entrecortada por pausas ocultas que minha mente optou por inserir para me poupar d’algum vexame. Sou incapaz de lembrar mais da metade de nossa conversa no trajeto de poucos minutos.

Restou-me, apenas, de alguma concretude, a lembrança da entrada daquele prédio, daquela recusa da primeira vez de nossos beijos; de sua mão no meu pau, de minha mão em todo seu corpo, no meio da rua, no meio das mesas, no meio dos garçons, no meio das putas e travecos, que ela decidiu recusar meu convite para subir até sua casa, do ódio que senti pelo trabalho que ela tinha me dado naquela primeira noite, da minha completa falta de expectativa que sequer vislumbrou encontros posteriores tão intensos, graves, sexuais, orgasmo, gozo, vinho, coquetel. Pressão. Olhos nos olhos, mais nada para dizer, a pergunta que não quer calar fica selada num beijo de canto de boca, de 75% ou mais de nossas bocas, que não me soam a nada, que não me despertam a nada. Parece que pesquei algo, não sei como explicar, mas faltou, inclusive, o gosto.

Lá se foi ela porta adentro, lá me vou eu, arrasado, embriagado, na noite maravilhosa, cheio de patacas para gastar, desgostoso, momentaneamente desencantado, percorrendo as imundas ruas da lapa quando esbarro nas amigas de Judy, no meio da rua, que deveriam estar no bar. As frangas cacarejam encantadas sobre como Judy finalmente acertou, arrumando um cara como eu, que isso era incrível, que tenho tudo a ver com ela e etcaetera e tal. I’m gonna get stoned and run around. E ajo miúdo, como um bêbado decadente, soluço para as moças que nada aconteceu. Quero ir embora dali imediatamente. Sou posto contra a parede. Como assim vocês não têm nada?? Você não a beijou? E tudo vira um grande interrogatório, um desencadear de indignação exageradamente disparada sobre mim. Convido-as a retornarem ao bar, preciso ir, não quero deixar Biaphra sozinho, preciso me livrar delas, de Judy, da repentina pressão. Saio.

Atravesso as calçadas apertadas, uma opressão embriagada, preciso esquecer imediatamente disso tudo, voltar minha mente para a suntuosidade da cidade-monstro, deixar-me ser lido por ela, ser vivido por ela, por suas pulsações e inusitabilidades. Parecia não escutar nada fora de mim, não sentia nada externo. Da porta do bar, de primeira, não localizo Biaphra, que num instante me chama de outra mesa, donde está sentado com dois caras levemente embriagados. Sento-me com eles, que se apresentam, arquitetos, um foi professor do outro na faculdade e agora trabalham juntos, enlouquecem juntos. O coroa é Carlos, que pelo alto grau de loucura e disponibilidade para conversar e dar-nos a sensação de familiaridade, apelido de Carlão imediatamente. O outro é Ávalos, jovem, calado, observador. Não imaginava isso, confesso que, de início, tive uma sensação de desapontamento de pararmos numa mesa com dois caras bebuns.

No entanto, aqui começa a virada da noite, o mergulho. Sobretudo porque com Biaphra ao meu lado sinto que minha energia cresce, flui solta, despejo meu encantamento em relação ao mundo com força, rio caudaloso, e meus medos que deveriam se duplicar com os medos dos outros desaparecem e acredito tornar-me fortaleza para estes também. Não sentia medo das ruas, das praças vazias, das pessoas, dos desconhecidos, da madrugada a pé, de nada. É direção embriagada, em alta velocidade, costurando carros e furando sinais perigosos. Não era apenas o álcool, não era apenas a vontade de querer, as coisas se sobrepunham, mal dava tempo de pensar. Carlão está completamente embriagado, pudim de cachaça, calças gastas, rotas, roupa imunda, querendo impressões nossas sobre Brasília, sobre o concreto aparente.